A Encosta - Resiliência.

[Anapaula, a mãe quer-te contar uma coisa: vamos mudar para a Encosta outra vez e temos que arrumar os nossos pertences.]

Não, a mãe de Anapaula, Briona, não fala assim como os professores. Ela faltava à escola quando era pequena, ficou com o quinto ano. Não gostava dos colegas, não a integravam, gozavam com a roupa de feira e diziam que cheirava mal. Não fala assim, mas ninguém pode falar por ela sem distorção, que seja então esta a seu favor. Briona vivia em casas da Câmara, em casebres ou em barracas. Às vezes levavam-na a visitar a mãe que estava presa e o pai que estava preso, mas poucas eram essas vezes, porque tinha muito trabalho a tomar conta dos cinco irmãos. Briona ia buscar água com uns garrafões e poucas vezes ia ao banho. Era difícil. Aquecer água nas panelas. Mandar os irmãos para a rua. Vedar as frestas para que não espreitassem, ou os outros miúdos da vizinhança. As baratas. Os ratos. Os piolhos. Tudo tão difícil! E conheceu o Clóvis que tinha hábitos de consumir droga, roubar, agredir e lhe trouxe isso tudo para a sua vida. Chamam-lhe violência doméstica. E ela hesitava, e denunciava, e arrependia-se e visitava-o na prisão e vivia escondida dele e dele teve filhos e por ele mentia à mãe, entretanto já em casa, recuperada e grande ponto de apoio. Sim, ela não falaria nunca assim, mas hoje trabalha a dias, de vez em quando emigra e depois volta. Perdeu a guarda de uma filha para a sua mãe: a menina vive com a avó. 

Anapaula acredita que Briona não voltará a fragilizar-se perante um homem, mas ainda o teme! Sim, Anapaula não fala assim igualmente. Pelo contrário, as palavras enrolam na língua o pensamento como terra por arar e lança um olhar de súplica para que lhe acabem as frases. Anapaula é doce, descreve com muita dignidade as fases da sua vida, apesar da sra. professora estar a mudar de cor, os olhos a amarelar, Anapaula prossegue com coragem e confessa o imenso medo que tem de acreditar em novos amigos. E mesmo nos que já tem. Tem medo deles, que lhe façam mal. Até mesmo lhe provoquem a morte ou pratiquem malvadez com ela. Já viu e ouviu tanto, tanto! Mas um fiozinho morno ainda corre no deserto que conhece, ainda se dá, numa tranquilidade digna, ainda tem fé, ainda se narra, ainda reconta as histórias bizarras, injustas, traumáticas da sua vida e pede, humilde, que a ajudem a ter confiança em si mesma! Porque Anapaula aprendeu o medo. O sono pode ser interrompido. A vida pode estar num limbo. Amanhã pode ser uma palavra que outros proferem e ela não escuta mais. Pode perder tudo! Pode ter o desprezo do pai que só viu uma vez, já com 12 anos. Pode sentir como família a avó paterna que só encontra no café e ser feliz com isso. Ela tem felicidade e infelicidade porque se põe a pensar em tudo o que tem a mais do que muitos, por África, por exemplo. A doce Anapaula expõe as feridas como se fossem fotos baças que cansou de ver. Fotos nas paredes. Tão, mas tão vistas que apenas lá estão, não desaparecem, não se esquecem, mas doem no quarto dos fundos da mente. Têm sorte em ter quarto. Ela não tem! Não se chama quarto. Não é só dela. Agora vão-se mudar e nem pensou na casa, nunca a viu, não mostra desejar algo na casa. Quantas vezes mudou? Dez? - pergunta a professora. Não sabe, mas muitas mais. 

[Clóvis esteve preso, não pelo que fazia à mãe  que ela não denunciava, por medo, mas por roubos e outras coisas] - enrola esse sentido, Anapaula, numas frases incompreensíveis em que quer acreditar que ele hoje também teme e se controla. No seu desejo, Clóvis está congelado; a mãe, Briona, está irreconhecível - é nisso que acredita, mesmo que num rolo espesso e emaranhado de pensamento à procura de oxigénio nas frases...

Onde agora vivem há uma instituição que ajuda a família e que ela frequenta para estudar. Na escola não há apoios das disciplinas. Tem tutoria, apenas. No bairro da Encosta não há instituições sociais. 

Falta dinheiro, sim. Faltam uns livros para a escola.

Ainda não sabe como vão transportar os sacos com os pertences para a mudança de casa. Não há carro. Nem carta. O avô tem carta e pede carro emprestado - é isso - cogita, aliviada. Ela fala delicadamente sobre cada assunto, com detalhe e razoabilidade. É isto a que chamam resiliência?! É a voz de um anjo?! Sem maldade, sem rancor, aceitante, precavida, corre-lhe no sangue a vontade saudável de se acreditar!

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