A Ouvinte Possível de Os Cus deJudas

Acabei hoje de ler o seu livro, quatro décadas depois. Reconheci-me - mal me lembrava de si - e porque na escrita acrescentou muito mais pormenores. Desconhecia a sua identidade. Mas fui eu a sua ouvinte e projeto de amante, naquele dia. Era ainda inverno, eu ainda jovem, tão jovem, o António tinha uns anos mais, contábeis pelos dedos das mãos, mas estava inquieto, inseguro, assustado. Encontrámo-nos num bar e depois fomos à sua casa quase vazia no Areeiro. Passámos umas doze horas juntos e contou muitas histórias e peripécias da sua vida, como se estivesse a morrer. Na altura, conjecturei que teria uma doença sem cura e que estava a passar pelo túnel da morte, aquele que dizem nos traz flashes acelerados de toda a nossa vida. Assim foi consigo. Por vezes cheguei mesmo a dormitar de cansaço, mas depois tomei café para me segurar e acompanhar o seu rio rápido de memórias a entrançarem-se em nós.

Lembro-me do António insistir no trato por você. Eu, que era de origem humilde, percebi que se queria distinguir. Pensei deixá-lo a falar sozinho mas apiedei-me, por um lado, mas, sobretudo, morri de curiosidade e embarquei consigo nesse quase monólogo. Sim, quase, porque eu interagi, não fui uma ouvinte passiva, como quer fazer crer! Porque me deu essa identidade de orelha e de objeto sexual?! de formato côncavo, como abusa no dizer. Lembro-me disso, usou essa palavra sem discrição, tudo e um par de botas, era côncavo. Na altura pareceu-me que a concavidade pela qual ansiava era um ninho, um buraco familiar, com alimento, abrigo, identidade outorgada.

Meu caro, bebia muito na altura! Encharcou-se de álcool. Projetou os seus vazios existenciais em mim! Não me descreve com correção no seu livro. Eu era sonhadora e ambicionava uma relação duradoura de completude e reciprocidade. Só não queria casar!

Fez confusão! O António era intrigante, denso, emotivo a transbordar de conteúdo. Só lhe faltava a forma, derramava-se e eu bebia, sequiosa, de si; o sexo foi pretexto, melhor, pós-texto, porque depois se afligiu e pouco mais falou!

Mas não poderia voltar para si nem lhe prometer continuidade. Estava muito doente, muito cheio de emoções por processar, sem saber como reduzir, aclimatar e eliminar excessos, e assim, perdia-se nos  labirintos da memória. O trabalho que lhe há de ter dado construir uma cidade com essas lembranças. Penso que aproveitou a matriz de Lisboa, pelo que li, a genealogia familiar e, ponho-me a adivinhar, as mulheres que o aninharam, os filhos que lhe deram uma missão clara: a de pai! Tudo terapias!

Agora que sei quem é, vejo que sobreviveu e se reinventou com muita sabedoria e arte. E que encontrou as concavidades de que precisava; que arrumou, ou vomitou, as dores e confusões na escrita. E até a doçura imensa do seu caráter. Parabéns! Foi uma honra ter sido o seu enclave, ainda que por uma só noite, pois que a sua substância era tamanha que eu não poderia acoitar, por motivos de dimensão de alma e não por filosofias burgo-depressivas da moda.

No entanto, hoje sim, estou vazia. Se me convidasse, não ia! Se começasse a disparar a sua angústia como o fez naquele dia eu dizia-lhe adeus, dói-me a cabeça, tome o meu número de telefone. Depois, não sei se atenderia qualquer número desconhecido! Provavelmente, não! Hoje já não!

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