A Casa Ensombrada.
Olá amiga. Obrigada pelo teu convite, mas não posso ir. Eu é que deveria receber-te em minha casa. Sabes?! Escolher a toalha de tecido nobre, cozinhar, ser pasteleira, ter à espera um bom vinho, com alternativas, uma sobremesa que te surpreendesse e conversarmos de coisas diferentes das habituais, animadas pelo álcool. Era assim que deveria ser! A música e tudo, tudo pensado, para te receber. Não é que não pense, mas fogem-me as ideias para outras coisas e não tenho andado cá por baixo. Na verdade, a minha casa só é minha por fracos motivos, pouco a frequento. Mas ainda cá hão de estar as toalhas de linho e outros tecidos de que a minha mãe saberia o nome, e sei fantasiar, e cozinhar... será que ainda sei?! Que raio descobriria eu se me pusesse à prova?! Ah, melhor não pensar, mas faltam muitas coisas na minha casa de hoje - está tão vazia! E as lembranças também vão esmorecendo apesar da casa ter uma memória de elefante, portanto, chata! Os recantos, os tecidos, os móveis, as louças, todos com uma história. Aborrece essa ligação, esse acumular de emoções, que nenhum sonho conseguiu limpar. Milhares de oportunidades em tantas noites de sono, com o tempo a ser contado nos relógios, nos calendários, nas agendas, primeiro adquiridas com ânsia no final do ano, depois oferta dos equipamentos eletrónicos, lá escondem estes, páginas e páginas de memórias sequenciais. Com a casa é diferente: tudo em simultâneo, tão pesado, que a minha pobre mente é pouca para tanta tralha!
É por isso e um par de botas que eu não te posso receber hoje, nem amanhã! Hoje pensei receber-me a mim mesma, mas olha que está a ser difícil: tropeço a cada esquina, chávena, máquina. Sabes?! Não fazia uma mousse, daquelas artificiais, há várias décadas. Claro! Não prestam! Mas eu não a fazia há décadas e hoje fi-la e estou contente. Fiz a mousse-sem-glória, mas está feita e com a máquina oferecida num dia especial e numa altura memorável em que as máquinas eram para a vida! Assim me obedeceu ela, coitada, há tanto sem ser útil. Cumpriu na perfeição. É por isso que não é tão interessante saber que o tempo passou. Muitas coisas estão piores. E de propósito! E nós sem nos manifestarmos. Ah, voltando à mousse lembrei-me das colegas e amigas que diziam sempre "mousse verdadeira"! Para elas muito importante, pelos vistos - mas essa era mais enjoativa, para mim! Sentindo-me desfasada, sempre calei a minha opinião, resta-me o orgulho de nunca ter apelidado uma mousse como "verdadeira"! E depois dessa lembrança verti a mousse em taças oferecidas pela D. Isabel. Não são umas quaisquer, foram escolhidas pela D. Isabel. A minha casa está cheia de gente, embora antiga, umas peles que ficaram para trás, mas que se me oferecem de fetiche. O problema é que eu quase não caibo na minha casa, com tanta tralha emocional agregada!
Vamos lá ver, claro que vivo em minha casa, mas não na concretude dela, apenas num recanto solitário da sua alma.
É por isso, amiga, que a minha casa ainda não está pronta para te receber.