Conversas com a dona

Sei que fica perplexa por lhe chamar dona, mas que no fundo gosta da minha companhia. Está aqui a ressoar nos tímpanos murchos o tlão tlão das horas do relógio de corda e o tic tac dos segundos, a calcular os minutos no intervalo -, que tem sobras de tempo para gostar das conversas que lhe trago aqui à sua casa apalaçada, onde o seu filho vem dar corda aos relógios e corrigir algum defeito elétrico, e fazer perguntas infantis e simples de resposta rápida. Comigo a conversa tem uma história de croché colcha de cama, em bilros a quatro mãos.
A mulher de que lhe falo, dona, tem coisas com nome de gente, mesmo antes de ser moda. O Antoninho é um urso que o namorado lhe ofereceu para abraçar na solidão.  Tem o tamanho de um bebé e ela quase nunca se lembra de afagar o urso, tão habituada que está de vê-lo no móvel de cruzetas japonês. E tem pó, de desprezo e do outro.
O João é uma planta alta com doze anos. Bifurcou-se há pouco tempo e precisa de pouca atenção. Recebeu-a sob protesto do amigo Paulo, Não quero plantas, não sei cuidar delas, ao que o dador retorquia, Não precisa de quase nada, tenho uma igual...
O Urso já tem vinte anos e viverá até a mulher partir. Depois, não sei!
E o gato teve menos sorte, durou menos que o João, e chamava-se Tomaz, nome escolhido pela patroa que o encontrou na rua e lho deu. Por coincidência, o mesmo nome do gato da irmã da patroa, que por despeito começou a chamar o seu animal por outros vocábulos como Xamix, Pitó, e outras patetices abichanadas.
E o computador era o Luisinho, só porque sim e o filho abortado chamava-se Vanghogh, em honra a pai e mãe de dotes para as belas artes. E a culpa foi da médica católica que achava a pílula abortiva e, pírulas, recomendou os métodos naturais, que naturalmente falham! Mas mudemos de assunto! Quer que lhe dê corda ao relógio da sala? O da música fúnebre?! Ah, desculpe! Acho uma fanfarronice a música dos relógios, mas respeito! Quer? Não? Tarefa do filho? Compreendo!
Gostava de saber a história dos seus vincos na face e dos seus vínculos também. E os segredos! Promete-mos? Não? Ah, talvez. Aceito! Hoje trouxe irrelevâncias, curiosidades, mas tomemos balanço.
Já lhe disse que gosto muito de chegar à sua rua empedrada, erguer a fronte e debicar com o olhar o brasão sobre a porta imponente?! Enfio a mão na batedor de chamar, ele próprio com uma mãozinha negra, que acaricio, enquanto aspiro vapores de óleo de cedro espanado pela sua criada de fora. Adoro subir as escadas de madeira rangente, parar para detectar o bicho do caruncho a acertar o compasso com o dlim dlão do relógio sufocado na cozinha, a que se segue o concerto fúnebre do relógio abandonado na sala, dessincronizado, e entretanto o caruncho escapa-me da atenção, que se volta para a sua ruguinha mais sexy, a dar volta na comissura dos lábios e lhe digo Olá dona, posso entrar? 

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