Do Estacionamento
No estacionamento do Bristô, enrolaram-se num beijo molhado, dona, no carro preto do engenheiro, pareceram horas. Ainda no dia anterior tinham ido passear lá prós lados do Martil, um roteiro de exercício, andaram para trás e para a frente. Sem beijinho. Tudo afastado. E no dia seguinte, dona, foi assim: pegaram-se.
E o tempo deu de passar, passando, passajando, e o relógio foi competir com o calendário da garagem do ti Rosário, cheio de gajas bronzeadas e definidas de músculos, e eu havia de ver os dois desenrolados, enrolarem-se de novo?! Ah não, ele arrependido pede um beijo "daqueles deles", mas ela nem para aí estava voltada. Pois, dona, ela já dera outras voltas após ele tê-las dado também. Não havia esperança, confessou-me ela numa conversa que tivemos sentados no muro da fábrica de marisco, aquele donde ainda se vê o mar. Chorou, dona, chorou pra valer. Mas para avançar só lhe digo que ele se pendurou no ferro dos cortinados e saltou da janela panorâmica depois de dar de comer ao cão e escrever duas linhas prós filhos. Dona, isto chegou-me tão por acaso e quando soube passei-lho e o meu receio é que ela tenha ideias dessas. Ah dona, essa mulher, vi-a de novo cinco anos depois no mesmo estacionamento, a hesitar entre carros, um pequeno e barato, outro de gama, ela e um homem pequenino, bem menos apessoado que o engenheiro, e depois vi-o sair de rompante, meter o turbo e desaparecer. A mulher está um perigo, as conversas que ela me esconde e de que eu tiro o sentido, dizem-me que está por um triz. Truz. Catrapumba! É por isso que lhe peço orientação, dona, que faço eu com ela?
Sempre que passo no Estacionamento vejo-a lá pelos olhos da memória, meia mulher, meio caranguejo a zambular caminho. E tenho pena dela, dona! Que mulherão, cheia de inventares em marés de mar chão, e no entanto, há dias de podridão de algas e lodo. Vejo-a lá no Estacionamento a ziguezaguear entre o carro pequeno e o gingão, em falas entrecortadas com o homem pequenino dono do carro grande num desentendimento de como conduzir a vida dali pra fora e ele dali pra frente, mas dentro, e ela insistia que dentro não cabia, não havia espaço pra ela e eu a sentir a sua aflição de mãos tesas fechadas a perder toda a areia entre os dedos delgados. Ela chamou-lhe esperança. Perdeu-a ali! Perdeu-a de supetão, mas depois voltou atrás e foi-lhe doendo devagarinho e com tempo. Já lá vão dois anos, que lhe acompanho a vagabundagem do Ser.
A dona está já a desconfiar de mim e da minha história surreal, mas asseguro-lhe que a mulher é sua conhecida e que tudo o que lhe conto é verdadeiro e que observei! E eu, dona, sou só um gnomo de consciência, solto, que me apiedei da mulher, antes, muito antes do engenheiro aparecer. Um dia conto-lhe, mas agora é urgente: que faço com a desencorajada da mulher?! Temo...!