O Crime

Já não sabia mais como dizer-lhe se para ir embora da sua casa. Esperou meses, que se acumularam em anos. Pensou nas possibilidades. Pegar no extenso guarda roupa dele e outros pertences e pôr tudo na garagem. Ele podia fazer um escândalo tocando à porta. Teria de chamar a polícia. Poderia gritar e ficar a desenvolver assunto com a vizinhança e mesmo que não dissesse nada, a quantidade de objetos e roupas daria nas vistas na garagem, que era partilhada, e ele poderia dizer que lhe tinham roubado algo, acusá-la. Não se sentia capaz! Podia pedir ajuda às irmãs, mas tinha vergonha de assumir outro fracasso na sua vida de sentimental. Sentia-se esgotada. Talvez estivesse deprimida. Trabalhava demais para pagar sozinha a casa. Chegava ao fim da tarde sem réstia de energia e ele a implicar com os gastos do supermercado, apesar das contas transparentes - tinha discalculia e paranóia, sempre desconfiado. De resto era a sua agitação, a sua hiperatividade, sempre a falar, mesmo quando ela lhe pedia para a deixar dormir...era isso tudo que a esgotava e lhe toldava o pensamento. 

Ela tomava antidepressivos, comprimidos para ajudar o sono, rastejava todas as manhãs para o trabalho e depois para outro trabalho e às vezes ainda outro. Precisava, para pagar a casa, o carro e as contas diárias.

Ele chorava por autocomiseração, que a vida não se lhe corria bem, que tinha azar, que o prejudicavam!...  Ela ia dando uma mão, ajudava-o no estudo de algumas matérias, dava-lhe alguns dos seus trabalhos independentes, escrevia ideias para projetos que ele ia apresentar, mas sempre ingrato!

Se morresse?! - pensava ela do fundo da sua impotência -, se morresse devagarinho ou lhe desse um sumiço, na lareira, no caixote do lixo, espalhado por aí?! questionava sem sentimento, como se fora uma fantasia qualquer, ou um filme de terror visto distraidamente. Começou por lhe pôr na comida alguns pingos, e depois mais, de líquido abrilhantador da máquina da loiça. Havia de ser venenoso, assim concentrado, mas teria alguma explicação se descobrissem. Mas teria mesmo?! Então e ela?! Bem, ela comia muito menos vazes em casa, por causa do trabalho. E depois foi acrescentando creme depilatório ao champô especial para a calvície. Nem sabia bem porquê, mas algo poderia acontecer. Limitava-se a experimentar, a ver se era capaz. E tinha sido, até aí!

Então resolveu falar com ele, ajudá-lo a mudar-se de casa, esperou, escolheu-lhe a mobília, opinou sobre a melhor localização - por vício, ainda lhe punha o creme depilatório no champô - escolheu, decidiu, aconselhou e um dia fez-lhe um ultimato para sair. E ele saiu, com um agradecimento irónico, mas saiu, entregando-lhe a segunda chave da sua casa.

Ela prosseguiu, esforçada, com recompensas sofríveis, deixou os antidepressivos, mas manteve os comprimidos para dormir em modo SOS.

Ele explorou outras mulheres e foi acumulando autonomia. Tornou-se uma pessoa mais feliz. Algumas vezes conversaram e ele reconheceu-se egocêntrico, mas sem remédio. 

Ela não percebe o que lhe deu, naquele tempo, para ter tido pensamentos e atos tão cruéis. Mas não se acredita capaz de um crime! Hoje é mais saudável. E respira de alívio: deixou-o viver, felizmente! E ganhou outra vida também!

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