Trechos de Vida 1

 "Vou-me sentar ao pé do meu marido" - disse a mãe, levantando-se do sofá, do lado dela, para se encostar ao marido, no outro sofá, a 45 graus daquele onde se encontrava. Marta ficou com a saliva bloqueada na garganta, a sentir-se miserável. "Quem não tem o amor dos pais, não tem de mais ninguém", era o que a voz do íntimo lhe dizia obsessivamente desde pequena. Estava tão carente. A precisar de uma carícia física ou verbal... Não seria de esperar que a mãe lha fizesse, não tinha uma única memória inteira de um carinho ou toque dela, que não sentisse a dureza da aliança na face, em bofetada. Nem ao menos uma conversa corrente, a ouvir a voz mais doce do mundo, que é a da mãe. Marta sentia-se muito confusa, mas não conseguia deixar de sentir o amor pela mãe e curiosamente, também sentir o dela, embora... Talvez em fragmentos vagos de um peito a amamentá-la, algumas frases "não façam sofrer a miúda" quando os cães rosnavam, não propriamente os cães, mas o pai e a sua mãe, fazendo-lhe bullying como desporto. Até lhe parecia , mais tarde quando se firmava no assunto, que esse era o modo de fazerem aliança e que sem isso seriam líderes em competição, líderes de quatro pobres sujeitos, uma mulher - esposa e nora -, a sua mãe, ela, a Marta e seus dois irmãos. Três crianças, para usar! Abusar! Seria? Se fosse, ninguém via?! Nem a vizinha Maria, a mãe da Rosário, a mãe do João e da Nela, e mais.. não viam?! Não intercediam?! Ela não se lembra de ninguém ter ajudado, talvez não se tivessem apercebido, talvez temessem a reação...talvez, afinal, ela já não se lembrasse bem.

A mãe não era assim, era doce, pacificadora, engolia sapos daqueles dois em competição pela rude valentia. 

Mais tarde Marta, já autónoma era recebida na casa de família como uma visita, faziam um pouco de cerimónia e mantinham a distância. Beijava, quando chegava e na despedida, mas só isso. Mas não era claro que ela e a mãe não se apercebessem reciprocamente de momentos de tristeza e até tinham conseguido, com o avançar da idade, conversar como amigas nos raros telefonemas! Mas eram mesmo raros; as lembranças, as quebras de confiança, com delações ao pai, deixaram marca, e sobretudo, não era evidente qualquer arrependimento ou verdadeira mudança de atitude.

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