Trechos de vida 2
Já ia nos trinta e muitos, quando se apercebeu de um trauma fundamental: a morte da criação, nome dado aos animais domésticos. A frieza com que se criava e se matava em grande sofrimento, o animal, sem qualquer empatia, destruíram a sua confiança na humanidade, pois se nem os que estão próximos se comovem?! E não a poupavam, apesar de ela não ser uma criança criada na aldeia e estar desprotegida, ou por algum motivo ser mais sensível. Quando se sentia em perigo, mesmo que simbólico, era assolada pelo sentimento que captara dos animais a serem assassinados, os seus gritos, o jorrar do sangue, a alegria dos matadores, a transformação do ser em carne, as refeições em que participou, na altura sem sentir repulsa - observava aturdida. Foi mais tarde que tudo se compôs na sua mente, aí pela adolescência, altura em que já não assistia a tais atos. Mas foi nesse tempo que os medos fóbicos a subjugaram e começaram a mandar na sua vida, escolhendo por ela. Mas o pior foi ter perdido a confiança moral em si mesma, sentindo que era capaz dos piores atos - o que a aterrorizava - e que um universo conspirara contra ela! Mas as marcas eram subtis. E seria vergonhoso mostrar as feridas. O Mundo, cheio de mágoas, violência, guerra, fome, maldades e injustiça não suportava a discriminação de que é capaz um ego. O seu estava retraçado, mas ainda assim suficientemente intacto e ela tinha várias capacidades engraçadas: conseguia aprender bem áreas diferentes, tinha habilidades, jeitinho para algumas artes, era curiosa e resolvia problemas da vida facilmente, assim se dispusesse ou alguma carga negativa a desafiasse. A sua personalidade evitante era espicaçável por provocações de competência: "é difícil, não se consegue!"- deixavam-na com vulcões de energia resolutiva. Passado isso, fazia o que tinha que fazer, em forma de civilidade e cumprimento de obrigações, e evitava muita coisa que lhe daria prazer se pudesse, se fosse livre - mas não era! Sonhava em ser grande cientista, resolver problemas importantes, mas coube-lhe um pequeno raio de ação na educação de crianças, que não a satisfazia e a levava a revoltas de perigo indeterminado para temperar a vida. Sentia-se num limbo, pois no momento de impulso, ninguém a segurava, nem ela própria. E em pensamento ainda era pior! A sua fome de vida era proporcional ao evitamento e Marta, de tempos a tempos, sentia-se rebentar; e então magicava alguma coisa, que lhe traria aventura e risco, mas sobretudo história e conhecimento de vida - e ela não se importava de poder parecer, a um julgamento incauto, que era uma perdedora, pois ganhava sempre o que pretendia: "o sofrimento era um efeito secundário, controlável" - pensava. Mas seria assim?! - duvidou mais tarde! Sentia-se pouco vulnerável, como se tivesse ganho uma espécie de endurance com a vida anterior. No entanto, raramente foi pouco ética, mas ainda assim, algumas vezes isso calhou na coluna da contabilidade dos efeitos secundários. E pouco se arrependeu.
Aos 13 anos começou a escrever um livro de análise social e económica, escreveu umas tantas páginas e depois deixou-se da ousadia. Estava traçado um dos seus destinos. Várias vezes na vida se meteu em terrenos pantanosos, se aventurou em matérias novas e se lançou se cabeça. Realmente ganhou conhecimento e mais tarde iniciou o hábito de redistribuí-lo, publicando-o. Por vezes, fazia formação e nem sempre era curta e de seguida lançava-se em algum negócio simples, mas aliciante, e ficava alguns anos até se fartar. Depois de alguma deriva, voltava a entusiasmar-se, e por vezes o universo conspirava um pouco a seu favor colocando pessoas especiais no seu caminho - ela sorria reconhecendo o padrão, mas no fundo sabia que era apenas mais uma provação, ou provocação do seu destino. Não era muito fã de crenças premonitórias, mas uma vez um grupo religioso prendeu a sua atenção com uma narrativa em que tudo tinha justificação e acontecia com finalidade de aprendizagem e desenvolvimento. Enfim, assistiu, passou por rituais inocentes e depois saiu, pois viu uma ideologia conservadora, machista e antirrevolucionária e ela reconhecia virtudes em, algumas vezes, se bater com a porta, dar um murro na mesa, ou a ação coletiva de dizer basta. E não ficou certa da benesse daquele destino, mas reconheceu a vantagem do consolo, que iria usar algumas vezes em momentos de desespero. Mas não era fiel a nada, a não ser às suas fobias e ansiedades. Até à depressão era infiel! Quantas vezes saiu em volte-face rápido de buracos negros da sua vida! Uma intensa imaginação salvava-a de se afundar em redução experiencial. Mas dos excessos de excitação com ideias, vivências, tinha que se proteger com ansiolíticos, isso desde adolescente, quando o médico lhos receitara, com a recomendação de arranjar um namorado, dito à mãe, em jeito de graçola, que deixou a menina - ainda o era - com complexos e uma fama duvidosa quando a mãe o reproduziu em família - que humilhação! o seu problema era falta de viver e ela era a vítima culpada, pois se mais não vivia era porque lho era proibido, por ser menina. E a vingança foi vindo em pequenas doses e muitas dores de que nunca se arrependeria!