Um recorte no espelho

A comunidade indiana em Portugal tem hoje um evento: o casamento da filha de Shatliva e Rioma. Apesar da casta, fazem trabalho braçal. Esperam o melhor para a segunda geração, que já frequenta a universidade e alimentam amizades, o mais que podem, para criar rede de apoio entre os portugueses, sobretudo os distintos. Foi assim que se dispuseram a participar em estudos sobre a diáspora indiana por antropólogos e desse modo confiaram em Carla Nuvem, conhecida dos tempos de Moçambique. Um nome invulgar numa pessoa incomum. Ela mesma sem pedigree, apenas o esforço comercial dos pais migrantes de Viseu para a Capital e um negócio de sal. A casinha pobre em Lisboa antiga, foi a que herdou, mas agora é valiosíssima com as políticas da autarquia e o mercado a inflacionar o valor da habitação. O casamento também lhe deu o nome composto por duas partes, pomposo, com bisnetice de relevo nacional e um primeiro marido de bem com a universidade, que lhe abriu portas e janelas e a co-autoria dos primeiros livros. E ela tomou balanço, ultrapassou-o e subiu ao pedestal da nova universidade dinamizada pelo retorno de gente influente das colónias, já faz tempo! Já tudo faz tempo! O nome pomposo caiu-lhe no divórcio, mas ficou-lhe nos filhos. Tudo com muita compostura!

A casa, onde Shatliva trabalha de mulher a dias, é a casa de família de Carla com a sua prole de dois rapazes, as cadeiras, as mesas, os candeeiros, o sofá onde tomam chá e fazem tropelias, como experimentar chapéus sexys, os guarda-fatos, enfim, a mobília retro, que contrasta com os motivos pintados nas paredes por ela mesma e os quadros de que é autora, exibindo um lado pouco expresso nas ondas luminosas e ingénuas do rosto; um lado lunar e misterioso, de ameaça, um lado de bruxa ou louva-a-deus, exibidos com humor, ao mesmo tempo que tolera os sinais de machismo nos hábitos sociais, e os contesta na investigação, ideológica dizem. É uma mulher discreta, tímida, de conversa doce e ajuizada, muito firme na banda lateral da política, inconsequente na prática vital, algumas vezes, pelo menos.

E ela viajou aos quatro cantos do mundo, onde houvesse "primitivos", gente autêntica, humanidade plena, levando os filhos enquanto pequenos e depois, eles já não queriam e ela partia solitária, por longos meses, sendo envolta em carinho de mulheres e seus filhos, pelos recantos adormecidos face à civilização dominante...

E ia trazendo para casa fetiches que descombinavam tranquilamente com o estilo retro da mobília e era tão ativista pós-colonial no que escrevia, como naif no traço primitivo de carvão nos seus desenhos, onde ameaçava os machos com forças femininas arquetípicas; os fundos eram palavras de protesto embutidas na tela, ou um descarado céu azul-ferrete, na parede. 

Trata a empregada como amiga e dela recebe amizade, que tanto lhe causou bem quando um cancro a ameaçou de morte e o amante a desfez em desilusões, com cobardias e sadismo. Mas não era esse o dia! Ali, estavam os dois, gracejando com a dificuldade dela se traçar num sari, desengonçada, e ele sem saber de nada dessas vestes ria e observava com orgulho a sua nova amante, tão desejada na juventude, mas depois...tinham-se separado, cada um na sua vida. Agora, ambos divorciados, ali estavam felizes a vestir-se para o casamento da filha de Shatliva, que era a empregada de ambos, pois viviam em casas separadas, sem misturarem as respetivas proles. 

Vendo à distância parece inacreditável como durou tanto tempo aquela relação que se iniciou com tiradas de fôlego e acabou moendo a desventura com assacar de culpas, ciúme, problemas, solidões, "tempos para pensar", regressos entusiásticos e ciclos infernais de sins e nuncas mais.

Mas naquele dia congelado na foto, uma carinha de menina, gentil, vestida de sari, sorri infantil de contentamento por ter conseguido finalmente aprender a vestir sozinha a vestimenta do seu objeto de estudo. Objeto que subjetiva sempre com muita empatia, e vê-se ao espelho do guarda-fatos retro, alinha o cabelo com os ganchos, o espelho já comprometido nos rebordos, ele esperando e rindo, verborreico como sempre, ela solene como uma deusa, grácil e o filho a tirar a foto que os eternizou, a ela menina, previamente ao cancro, a ele, apaixonado, muito antes de lhe descobrir a cobardia, o desinteresse por uma vida em comum, o sadismo provocador ao pai dos seus meninos e seu ex-marido, enfim, muito antes de lhe infernizar a vida e lhe usar a empregada como espia.

Foi um dia bom e a festa durou uma semana inteira cheia de cor, música étnica, tudo como devia ser para uma vida bem sucedida e distinta, da segunda geração da diáspora, em Lisboa!

Hoje, dele, Carla limpou todas as memórias, apagou fotografias quando as encontrou, sem esforço adicional; evita o Vimeiro ancorado nele, evita o que a faça lembrar desses tempos sem glória, evita a sua página de Facebook provocatória. Evita-o, mas não tinha reparado que ele lhe empestava a foto, mais precisamente, um recanto do espelho, enquanto ela, vibrante de entusiasmo, sorria para a máquina fotográfica, orgulhosa de ter vestido o seu primeiro sari. E ele ali, de meio corpo, mas ele, insistindo na memória! Vá de retro! - expulsou-o da lembrança, recostada no sofá, com a parede da bruxa com a vassoura em riste por cenário, e pela frente, a louva-a-deus sequiosa do manjar, mas ela, a pintora, a antropóloga, a amiga, a mãe, não mais amante de ninguém, só fazia ameaças. No real, era doce e maternal a maior parte do tempo!

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