A Desconfiança
Ele chegava aliviado do trabalho, já a respirar fundo, após ouvir o chilrear dos passarinhos e ver as abelhas a laborar entretidas nos canteiros, parou junto à árvore da janela, inspirou fundo, pensou "hoje a empregada não veio?", porque a janela do seu quarto estava fechada, fez uma festa à gata da rua que por ali poisa, meteu a chave à porta do prédio, depois à da caixa do correio, tirou um envelope volumoso e umas cartas com faturas, pô-las debaixo do braço e abriu a porta de casa lançando-se quarto adentro e espojou-se na cama violentamente, sorrindo aliviado. As cartas espalharam-se por ali. Ficou a olhar para o candeeiro e a respirar fundo e depois reparou melhor no envelope maior e rasgou-o: apareceram fotografias da namorada em esplanadas, à porta de prédios, à entrada de carros, numa praia, e aos beijos... Deu-lhe um baque no coração e temeu pela sua saúde coronária frágil. Depois retomou o desfiar de fotos! Parecia de um filme de detetives privados! Não era verdade. Afirmou a vista para ver se era mesmo ela, ou alguma composição! Não sabia! Parecia ser ela! Podiam ser fotos de outros tempos antes dele, mas tinham datas registadas em baixo, à direita! Droga, podia ser tudo forjado!
Esgotado, precisou de descansar. Tentou dormitar, mas claro, acabou na cozinha a comer doces. Bebeu depois álcool, forte, destilado! Não queria estar inteiro para aquele filme! Apagou-se algures pela casa.
No dia seguinte, maldisposto, acordou a meio da noite. Estava na cama! Depois lembrou-se da situação e desejou ter tido um pesadelo! Já de manhã, não deu os bons dias à namorada com o smile habitual. Não conseguiu.
Meteu atestado médico. Fez uma sistematização das datas, horas e dos encontros que ele próprio tinha tido com a namorada e realmente não coincidiam com os timings das fotos! Poderia ter sido verdade! Mas porquê?! Se eram felizes! Ela até era um pouco ciumenta! Não tinha lógica.
Reviu as fotos com lupa. Numa delas estava a filha púbere no carro. Um outro homem a beijar a sua namorada! Isso era ainda mais grave! Significava que andavam, cúmplices, a preparar algum golpe! Foi ver a conta bancária - estava bem! Pôs-se a tremer, de raiva, de desilusão, de receio, de incompreensão!
Procurou por detetives privados. Pediu um serviço e ficou à espera duas semanas. Durante as mesmas não conseguiu olhar para a cara da mulher. Inventou uma viagem ao Norte para tratar de umas heranças, meteu baixa e ficou por casa, alcoolizado e a dormir, via series em catadupa e fazia jogos digitais - tudo que o deixasse em transe. Por fim, marcou uma sessão online de psicoterapia e depois prosseguiu. Precisava de medicamentos para dormir! Depois, de antidepressivos.
Finalmente as fotos chegaram. A namorada tinha tido uma vida banal, sem encontros obscuros! Não entendeu!
Seria uma montagem, então! Ganhou coragem e marcou encontro com ela. Vomitou antes de sair de casa. Chorou até! Parecia já não gostar dela, como se tivesse morrido e fosse agora só memória.
Quando tocou à campainha da sua casa, fugiu! Foi para o bar da praia perto. Bebeu uma destilada. Começou a sentir que precisava agora de álcool, desconfiou de vício! Haveria de tratar disso, mas depois!
Ela contactava-o pela Internet, para saber o que se passara. Ele não conseguia responder!
Voltaria para Lisboa. Mas antes, telefonou a uma prostituta que conhecia e que chamava em momentos muito raros, mas especiais. Ficou no seu colo como um bebé, a ser afagado na nuca! Não conseguiu fazer mais nada. Pagou, saiu! Pediu um táxi, não se sentiu capaz de conduzir. Depois disse ao condutor para voltar para trás, não lhe pareceu bem deixar o seu carro por ali, ao deus dará, nos arrabaldes. Voltou a conduzir. O telefone desligado. Quando o religou, estava cheio de mensagens. Ele não conseguia responder!
E se ela tivesse negociado com o detetive dele, se se tivesse apercebido e juntos ?!...
Não conseguia confiar. Fosse ela inocente, ele já não poderia retomar a relação. Iria chorar! Iria fazer luto! Mas não a enfrentaria mais! Nunca lhe respondeu!