O Desenvolvimento de Porto Mastim

Um enclave nas falésias, bem apertado, estreita três ruas perpendiculares à margem do rio e afaga entre cada fileira de casas e a rocha, uma espécie de pombais humanos, feitos de contraplacado, lata, ferro e esferovite, a que o tempo acrescentou algumas paredes de tijolo e persianas nas janelas. As casas de baixo misturam gerações e níveis de vida. Umas repetem a traça, são pequeninas, de primeiro andar, outras de rés-do-chão e quintal, às vezes com cobertura de onde oscila, ao ritmo do vento, a quinquilharia comprada na feira; noutros logradouros, o higiénico cimento dá o mote da desolação a tanques de lavar roupa ancestrais de utilização duvidosa, ou, pelo contrário, exibe-se um investimento no grelhador e nas cadeiras à espera do sol ou da refeição, congeminadas com a mesa e a toalha de plástico. Ocasionalmente, por algumas frestas das janelas, a música popular espreita descarada e estridente, mas o povo é, habitualmente, recatado. Uma ou outra casa mais alta, com especificidade artística, em aparente restauro; casarios contíguos, altos, esbeltos, compridos, firmam também a sua identidade na vila de Porto Mastim.

Na praça central em semicírculo onde desaguam as ruas - e donde se veem os pináculos das casas entaladas contra a falésia, as que conseguem ter vista de e para o rio e nos dizem: “olá” -, nessa praça, junto ao marulhar, há restaurantes apinocados à espera dos visitantes das cidades próximas, pelo peixe fresco e pela vista soberba. Por aguardar ser visitada, a vila do Porto Mastim tem um barco de passageiros a motor, moderno e espaçoso, onde infelizmente ainda não há trocas: saídas e entradas de passageiros. Mas aguarda por tê-los em breve! Prossegue, esperançosa!

Há vários edifícios estripados e muito plástico e restos de tudo o que a cidade do outro lado expele, encravados pelas orlas de areia, ou a tocar ritmos nas muralhas do porto, mas, sabe-se lá como, sobe o lixo também pelas pequenas e desajeitadas estradas que mostram estaleiros decrépitos e portões que encerram a vila à esquerda e à direita. Só resta ao olhar exigente escapar pelo rio ali à frente, imenso como um mar, não fora o presépio bem delineado na outra margem do estuário da cidade maior, distante o suficiente para ter outra pertença.

E em destaque fica a igreja pequena - pórtico de tranquilidade -, que tem em seu redor um excelente espaço arborizado, uma dezena de bancos de jardim de madeira e um parque para crianças, anunciando pois, ao visitante, que apesar de pobre e degradada, a vila tem traça, fé e futuro.

Mas é no café da estação dos barcos travesseiros do rio que encontramos o povo disponível para os dedos de conversa, se não houver pruridos com a linguagem brejeira aclimatada no som esganiçado da música de certa escolha, e mais alguns pormenores específicos.

De vez em quando, um grupo de pescadores por amadorismo, com barco, com linha, e outras possibilidades, é visto junto à amurada ou na pequena enseada, do lado oposto onde se verte um esgoto a céu aberto, envergonhado.

E foi a este cenário de pequena vila piscatória que eles chegaram, os forasteiros!

Khalua chegou a Porto Mastim e procurou por um quarto numa casa de família. O Botas, de alcunha, fez o mesmo. A Ti Mercolina ofereceu-se para aderir ao BanB, a conselho da filha a viver na Suíça, mas nem Botas, Khalua, Folkiama, ou Patrícia Belo aceitaram o alojamento local. Todos pretendiam quartos em casas de família. E podiam-se arranjar todos na mesma habitação. Mas não! Cada um queria estar com uma família e lá se explicaram dando mote a histórias que se segredavam pelas poucas esquinas, o mais das vezes da janela para a rua e vice-versa, ou com os braços na cancela do quintal acimentado, ou ainda à sombra da buganvília ou do limoeiro, sacudindo as moscas com gestos engraçados - nunca dentro de casa, que os vizinhos não eram de demasiadas confianças.

E quando veio o Dr. Frances, e o ucraniano Paloniov, também eles com a mesma proposta, o povo esgotou as teorias e já se falava doutra coisa e lá se acomodaram, cada um, numa casa de família.

Os senhorios estavam contentes com o dinheiro recebido, e podia ser um aluguer clandestino, sem complicações de impostos e recálculos de subsídios; os inquilinos animavam e traziam novidades e histórias que depois eram recontadas pela vila e todos se sentiram mais interessantes, mesmo os que só redistribuíam em segunda mão, a conversa.

Os hóspedes trabalhavam, cada um em sua azáfama, mas teriam bons horários, pois conseguiam conviver com os da casa e ainda com os da vila, criando um ambiente mais jovem. Tinham todos entre os trinta e os quarenta e poucos, exceto o ucraniano que tinha sessenta enxutos, e o doutor Frances, já reformado.

A Belo fez amizade com o guarda-noturno da empresa do armazém livreiro e invertia o ritmo circadiano com ele. Aos dois se juntou o Dr. Francês, como lhe chamavam, que era francês, fazendo jogatinas de xadrez, patuscadas e tertúlias também, que Frances era arqueólogo e Belo tinha por hobby, a espeleologia. O guarda era um bom pedaço de homem, musculoso e vivaz na conversa, viera desempregado de uma editora, não se sabe o que fazia lá. Aqui, claro, era sua função manter-se desperto, vigiar o alarme eletrónico e tratar do cão - um rafeiro simpático, mas muito ciente das suas obrigações: ai de quem se aproximasse! Portanto eram uma quadra, A Quadrilha, como se intitulavam, bem-humorados.

O armazém não tinha só livros, ao contrário do que a população pensava, era de memorabilia, sobretudo jornalística, e pertencia a uma associação criada por um ex-político e comentador famoso dos media, mas ninguém por ali, sequer o imaginava. O dono contratara um curador, que era quem por lá cirandava durante o dia, que por sua vez contratou um assistente. De vez em quando, uma tertúlia ocorria ou uma mostra, mas muito raramente. Assim, o guarda agradecia a simpática companhia dos outros três. O das quatro patas tinha sido adotado; Frances era reformado, e Belo estava em sabática e em alguns projetos, qualquer coisa assim!

Quem rosnava era o povo, que uma beldade e dois homens juntos na calada da noite..., mas depois habituou-se e passou a ver com naturalidade os encontros, tidos como de intelectuais, num armazém cheio de livros.

"E a menina não tem amigos que possam querer acomodar-se na minha casa?", perguntavam os outros vendo o desnível do poder de compra a aumentar em relação aos vizinhos. "Vou ver, prometo!", respondiam. Eles e elas.

O grupo era tido como de gente evoluída, mais culta e jovem do que a média da população local, trazia ideias e ajudava a tratar de documentos, em particular os digitais - tinham-se entrosado com o povo, numa sadia interação.

A Ti Mercolina deu o chuto de saída e informou os vizinhos de que iria vender a casa para ir para o pé da filha na Suíça. Mas só o disse para arranjar acomodação para a inquilina num vizinho de quem era amiga e com tudo já preparado para a viagem. Deixou todos admirados e foi um falatório, mas só até a Ti Conceição do Murtório ter tomado idêntica decisão e deixado o ucraniano à procura de acolhimento, o que não foi difícil de arranjar. O povo atónito via um a um, no espaço de um mês, a vender a casa e a partir satisfeito. As saudades antecipadas de quem ficava, começavam já a deslaçar lágrimas, acusações, medos de ficar sozinho, mas por outro lado, viriam mais alguns trocados, não poucos, que os inquilinos deslocalizados já cediam com facilidade a alguma especulação feita pelos moradores com o seu sentido de mercado da lota: atiravam um valor absurdo para o ar, e, por incrível, eles aceitavam.

Os que tinham casa arrendada foram assediados pelos donos delas, que o local se tinha valorizado com a reconstrução das casas... E os jovens sabiam de uma solução, um pouco mais para a frente, no mesmo lado do rio, duns bairros a preço muito baixo, por dois anos e depois se via, mas quase de certeza se manteria. Ou então a sociedade mutualista e a IPSS residente do bairro, haviam de dar uma solução. Eram casas a estrear. E não foi difícil convencer um grupo a mudar-se para as casas novas, com a mesma renda que as atuais.

Em poucos meses, a vila de Porto Mastim encheu-se de construtoras, camiões, alarmes de marcha atrás, trambolhões do cimento nas betoneiras, motores a martelar, pó, e tudo o mais - em nome do desenvolvimento. Os restaurantes apinocados rejubilaram com tanta clientela das obras. Depois acalmou: as casas estavam lindas, restauradas, com vidros duplos, cores elegantes, e vazias. O silêncio retornou à vila do Porto Mastim, mas as perdas eram incontáveis, não havia dedos nas mãos para contar as famílias que tinham partido, vendido a sua casa ou sido realojadas. Ficaram poucos, e com eles só se manteve o Dr. Frances e Patrícia Belo, que se tinham tornado quase transparentes com a sua vida noturna no armazém dos livros e os seus afazeres por fora da vila.

E houve quem do comércio começasse a temer pela falência do negócio, que agora sem obras e a fama de entulho e ruído se tinham afastado os turistas; havia que recuperar clientes. Talvez não se importassem de ver a vila descaracterizada, não que estivesse feia, mas com carros de vidros fumados que se enfiavam nas garagens subterrâneas; casas donde não saiam gatos, nem tapetes eram sacudidos à janela, nem conversas de vizinhos aconteciam e, muito raramente, os residentes eram vistos ou frequentavam os restaurantes turísticos locais. Eram muitos orientais, não dava para falar com eles, nem nisso mostravam interesse!

Os restaurantes pensaram reativar a publicidade e sentiram falta dos ex-inquilinos jovens, tão hábeis naquelas tarefas.

E, um dia, vieram os políticos locais visitar a vila e, no armazém de livros - pela primeira vez aberto ao povo, e, para seu espanto, com os novos moradores convidados, tão de cara fechada e de outras paragens sociais e geográficas -, o Sr. Presidente se disse muito feliz com a reestruturação urbana de tão belo enclave e o deu como exemplo às outras localidades daquela margem do rio.

E os donos dos restaurantes sentiram que o seu tempo era de partida! Também!

Belo e Frances não faziam apenas tertúlias, sessões de filmes e comezainas no armazém dos livros. Na verdade, a aproximação de Belo ao guarda-noturno tinha sido interesseira. Patrícia Belo trazia a mesma missão de Khalua e dos outros hóspedes, que era de convencer a população envelhecida a vender as suas casas a uma especuladora imobiliária, sendo recrutados entre atores amadores, mas ao passear junto ao armazém, rente ao estaleiro degradado, logo lhe chamou a atenção, num pátio bem cuidado, um arco de tijolo antigo e contactou o seu conhecido arqueólogo, que após algum estudo, lhe criou fé numa exploração proventosa e talvez cheia de aventura - já se imaginava a usar as suas habilidades de espeleologista.

E, assim foi, com a ajuda do guarda, do cão, de Frances, e posteriormente com a cobertura dos camiões das obras, que exploraram e retiraram entulho de uma abertura que levou a um aglomerado mourisco, ainda intacto, apesar de soterrado, um palácio de grande riqueza, fazendo lembrar os de Alhambra. Agora só faltava validar a descoberta e envolver os novos moradores como investidores na restante escavação, que promete encontrar salas e salas, jardins, passagens secretas, enfim, um tesouro soterrado, que, aberto ao público e explorado turisticamente, trará um rendimento absurdo aos investidores. Porém, Belo e Frances exigiram, a troco de toda a informação que têm, a criação de um bairro de traça típica em Porto Mastim, só dois pisos mais alta, para recuperar a população autóctone (herdeira da tradição piscatória) para a vila e um lar de terceira idade para os locais. Negociaram também que o acesso à estrutura turística seria pelo rio, um quilómetro a jusante, e que o acesso a Porto Mastim seria condicionado a um número máximo de visitantes, por marcação, de modo a manter um estilo de vida, mais ou menos comum, com a pesca, os restaurantes típicos de peixe, e o sossego.

Mas para o turista ansioso, seria criada uma vila replicada, com atores viventes, um quilómetro a montante.

E assim, se acabou a estória!

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