Um Conto Misterioso
O marido prometeu-lhe uma viagem surpresa. Enquanto se dirigia para casa, sorria por todas as frestas do corpo e a mente começou a fazer prólogos preparativos e a criar cenários em horizontes românticos. A mulher expandia a sua satisfação através da pele que esticava e melhorava a cor com um carmim de saúde, os olhos brilhavam à vez na sombra das pestanas alongadas, o cabelo adquiria um viço de juventude e os aromas de terra e citrinos surgiam em sequência pelo caminho, onde viu canteiros de flores que nunca tinha observado antes - no percurso habitual para casa. Uma canção compunha-se-lhe no ouvido, e flashes do casamento, do nascimento dos filhos, desfolhavam-se à sua frente. (...) Não se lembrava bem! Como dizer? Queria...como ...
- Dulce! Dulce! Querida, estás a ouvir?
- Eu...estou confusa! Conheço-te? Quem és?
Ele chorou e logo virou o rosto. Mas não foi a tempo, ela vira e chorou também, uma lágrima soltou-se, uma ligeira aflição, e de novo só o presente, as palavras soltas, tudo tão difícil e o rosto continuava ali à sua frente, perto.
- Dulce! Minha querida! Tiveste um acidente e estou aqui. Vamos, luta!
[Bla, Bla, Dulce - conhece esse som - "Dulce", dá-lhe uma emoção especial. Porquê? Dulce!]
- Nada! Tudo igual!
- É de esperar! Amanhã, não sei se posso vir!
«Faria alguém isto por mim?», pensa a enfermeira.
Como quero fazer? Quero?! Tenho querer? E ela o que quererá? Quem vai querer por nós os dois?! Cuidados paliativos? Assistentes 24h em casa, especializados se possível?! E a namorada, como irá reagir?
Fernando fica muito stressado, corre para o hospital. Durante a viagem telefona para os amigos a aconselhar-se, até para o advogado; evita falar com a namorada. Escapa-se-lhe o controlo do carro e atropela uma mulher. Ela ficou sem reação, paralisada; jorrava sangue do lado esquerdo pela cabeleira desalinhada, o corpo abandonado. Veio o 112, a polícia, o homem de mãos à cabeça, tentava explicar-se. Acompanhou a mulher ao hospital. A polícia identificou-a, chamava-se Dulce. Após operações e tratamentos ficou apática, sem poder usar a linguagem, receber ou falar. Palavras soltas.
Ele resolveu acompanhar o seu estado, apesar de ela ter entrado em coma. Frequentemente levava-lhe flores para a cabeceira e a enfermeira Rita ia-lhe dando conta do seu estado. A mulher não tinha outras visitas. Ainda se lembrava de quando ela voltara a si, há uns anos, e ele tentara contactar com ela - esperara um milagre. "Dulce", chamara-a pelo seu nome, a palavra mais forte que poderia dizer, mas pouco acontecera e depois entorpeceu de novo e recaiu no estado comatoso! E ele prosseguiu na clínica, arranjara uma nova namorada, com quem vivia: uma relação tão inesperada, que o preenche. No aniversário vai surpreendê-la com uma viagem! Ela vai gostar!
- Senhor Fernando, como se sente hoje?
- Estou bem obrigada, Mina!
- Não sou a Mina, sou a Rita! E bom dia! Está com bom aspeto! Um borracho!
- Ah!, e sorriu!
- Dulce?
- Não senhor Fernando! Quem é a Dulce?! Eu sou a Rita, a enfermeira que trata de si aqui no lar!
- Bom dia, Rita! Desculpe. Faço confusão!
- Senhor Fernando, se calhar disse isso porque já sabe que vai receber um prémio pelo seu último livro.
- Livro, é?!
- Sim senhor Fernando, o livro Dulce, não se lembra?!
- Vamos Dona Paula, tem que comer esse pãozinho!
- Dulce! Dulce! Querida, estás a ouvir?
- Eu...estou confusa! Conheço-te? Quem és?
Ele chorou e logo virou o rosto. Mas não foi a tempo, ela vira e chorou também, uma lágrima soltou-se, uma ligeira aflição, e de novo só o presente, as palavras soltas, tudo tão difícil e o rosto continuava ali à sua frente, perto.
- Dulce! Minha querida! Tiveste um acidente e estou aqui. Vamos, luta!
[Bla, Bla, Dulce - conhece esse som - "Dulce", dá-lhe uma emoção especial. Porquê? Dulce!]
Dulce está cansada e fecha os olhos. Não percebe nada! Palavras soltam-se dentro, dois rostos reagem, ela reage com eles, mas não compreende o que sente, mas sente, sem palavras!
Depois cada vez mais sono e um silêncio dentro...
Depois cada vez mais sono e um silêncio dentro...
(...)
- Flores, hoje trago petúnias, enfermeira Rita. Alguma alteração?
- Nada! Tudo igual!
- É de esperar! Amanhã, não sei se posso vir!
- Claro. Já faz mais do que seria de esperar!
«Faria alguém isto por mim?», pensa a enfermeira.
«Ela não o fará por mim, pensa ele!», mas apressava-se para ir dar consulta na clínica.]
Dois anos passaram, ele refizera a sua vida, tinha uma relação estável e hoje a enfermeira Rita telefonou: pensou o pior - sim fora o pior! Doutor, ela voltou a si, mas está incapacitada de uma vida independente, não fala, não parece compreender o que ouve, sorri automaticamente, como quer fazer?!
Como quero fazer? Quero?! Tenho querer? E ela o que quererá? Quem vai querer por nós os dois?! Cuidados paliativos? Assistentes 24h em casa, especializados se possível?! E a namorada, como irá reagir?
Fernando fica muito stressado, corre para o hospital. Durante a viagem telefona para os amigos a aconselhar-se, até para o advogado; evita falar com a namorada. Escapa-se-lhe o controlo do carro e atropela uma mulher. Ela ficou sem reação, paralisada; jorrava sangue do lado esquerdo pela cabeleira desalinhada, o corpo abandonado. Veio o 112, a polícia, o homem de mãos à cabeça, tentava explicar-se. Acompanhou a mulher ao hospital. A polícia identificou-a, chamava-se Dulce. Após operações e tratamentos ficou apática, sem poder usar a linguagem, receber ou falar. Palavras soltas.
Ele resolveu acompanhar o seu estado, apesar de ela ter entrado em coma. Frequentemente levava-lhe flores para a cabeceira e a enfermeira Rita ia-lhe dando conta do seu estado. A mulher não tinha outras visitas. Ainda se lembrava de quando ela voltara a si, há uns anos, e ele tentara contactar com ela - esperara um milagre. "Dulce", chamara-a pelo seu nome, a palavra mais forte que poderia dizer, mas pouco acontecera e depois entorpeceu de novo e recaiu no estado comatoso! E ele prosseguiu na clínica, arranjara uma nova namorada, com quem vivia: uma relação tão inesperada, que o preenche. No aniversário vai surpreendê-la com uma viagem! Ela vai gostar!
- Senhor Fernando, como se sente hoje?
- Estou bem obrigada, Mina!
- Não sou a Mina, sou a Rita! E bom dia! Está com bom aspeto! Um borracho!
- Ah!, e sorriu!
- Dulce?
- Não senhor Fernando! Quem é a Dulce?! Eu sou a Rita, a enfermeira que trata de si aqui no lar!
- Bom dia, Rita! Desculpe. Faço confusão!
- Senhor Fernando, se calhar disse isso porque já sabe que vai receber um prémio pelo seu último livro.
- Livro, é?!
- Sim senhor Fernando, o livro Dulce, não se lembra?!
- Vagamente!
- Vamos Dona Paula, tem que comer esse pãozinho!