Uma tarde de outono

O outono trouxe dias indecisos, mas hoje o céu azulou. Estive a compor o meu último livro e, inevitavelmente, reentraste na minha vida como um fantasma. Vejo-te a ires de Alvalade a Algés. Um Algés álgico com muitas memórias para ti e para mim. Nenhumas nossas! Mas vejo-te no teu carro, a partir do teu próprio olhar, do teu pensamento, de alguma moleza e apaziguamento enquanto deslizas a velocidade baixa pela marginal. A torre de vigia inclinada sobre o Tejo atrai o teu olhar, é quase um vulto - e pensas que has de vir com ela ao Siesta ali perto. O sol a derramar-se em laranjas e dourados e tu em paz, seguro agora de que ela te quer, tanto que te está quase a convencer a casar. Logo tu, que te sabe tão bem a solidão, daquela voluntária, que é só carregar no botão, ou no ecrã do telemóvel e marcar um encontro, e o sexo decorre! Estás feliz, agora, sem te preocupares em mudar a situação. Talvez lhe digas que sim, já que tanto insiste. 

Lembro bem de como é conduzir pela marginal ao fim da tarde com o pôr-do-sol a ganhar aos óculos de sol, cegando ainda, a mim que sou sensível, a ti não! Lembro bem o que é ter uma relação segura e de ser uma questão de tempo ter um beijo, um afago, um olhar penetrante, um prazer emancipatório. Chamo-lhe assim, estupidamente, emancipação, ao sossego do sexo companheiro, ao paliativo da solidão, ao lúdico e lúbrico, às formas de ampulhetas e triângulo, vazios e excedências, aos sabores doces com sal e ao alívio corporal e da alma também. Só me lembro porém, com algum escárnio, do tempo em que era fácil. Para ti parece sê-lo ainda! Tudo com um estalar de dedos. 

Hoje ela prepara o jantar, ouve os teus comentários políticos, ouve-te até ao tutano. Finge que percebe tudo, que se interessa incondicionalmente, mas está de olho na tua conta bancária e na segurança que ela lhe dará, pois que vive na corda bamba, simulando um estilo de vida que não pode ter; não com recursos próprios! E ri e ri e é tão feliz, daquela felicidade de comprar tolinhos como tu! E eu a seguir-te dentro dos teus olhos, a cegar pelo sol e pelo ciúme - que faço eu aqui?! Quando vou ao Siesta?! Quando vou passear na marginal?! Quando marco um encontro interessante?! Quando e porque não agora?! Viver a vida outorgada é vício de escritor: escreve e não faz!

Mensagens populares deste blogue

Madressilva

O Belo

Fragmentos