As múltiplas sombras de Otávio

Ah o Otávio, o Otávio; o Távi, o Távinho! Lembro-me dele, impávido ao tempo, sempre o sorriso comedido, a significar coisas diferentes dos sorrisos nas outras pessoas, muito firme nas suas extravagâncias - devemos classificá-las de extravagância ou de misoginia?! - o Távi muito certo das suas certezas, funcionário público, daqueles casos tão caricatos da norma, que poucos são tanto assim! Ele era esse tanto, essa exceção de tanta normalidade. Perdoem a contradição, mas penso que sabem do que falo.

Olha eu conheci o Távi quando ele era diferente, deixava-nos a trabalhar no grupo e com toda a lata ia ler o jornal para o café,  sistematicamente!

Quem diria, depois tão rigoroso com os outros, desde que se tornou meio-chefe. Meio-chefe é chefe intermédio, daqueles que sobrevivem a mandatos e mandatos dos líderes principais que fluem entre os vários ministérios ou mesmo vão a outras vidas, e eles sempre lá - muito típico, aliás!

Eu conheci um Otávio inovador: imaginava maneiras de fazer as coisas e experimentava-as, em particular quando se juntava a outros inovadores das castas antigas. Não tem graça aquilo de que me lembro. Verdadeiras aberrações, que nunca foram sequer avaliadas, quanto mais julgadas - apesar de se terem obtido consequências exasperadoras...

Explica.

Aos poucos, até me dói lembrar!

Eu conheci um Otávio simpático e educado, que acabava por ser low profile, tirando em alguns temas da sua obsessão, como logística, poupança de recursos, e castigos aos utentes.

Às vezes distribuía elogios - mais tarde percebi neles um grande cinismo! Recordo da Marília ter estado a assessorá-lo e vir escandalizada com o modo como se falava dos funcionários, a falta de respeito!

Não são afinal Otávios diferentes. Nem sequer um Otávio multifacetado, mas daqueles personagens cínicos e intocáveis nas malhas compridas e enleadas da administração.

Não era um homenzinho quase transparente que só se ouvia falar dele muito de vez em quando e para reduzir qualquer coisa?

Apanhado! Sim reduzir, secar, diminuir, controlar, espremer, certamente isso caracteriza o Otávio que eu conheço.

Sempre o mesmo sorriso. Ou pouca variação dele, para te dar um elogio ou para dar a notícia de que te tramou a vida!

O Távi, até tenho boas lembranças, não chateava muito, era um bocado teimoso, mas em grupo faziamos-lhe frente. Não parecia particularmente corajoso.

O que eu mais observava encantada era a arte da dissimulação, o modo como bem-tratava quem estava a prejudicar - refiro ao aparente bom-trato, ao ar polido.

O Távi, será que toma uma bejeca?! Nunca o vi conviver com ninguém, nem falar da sua vida pessoal, eu diria que é um robô infiltrado na humanidade!

Um psicopata?

Quem sabe?!

Mas não sabemos de crimes maiores! Tudo nele era pequeno, burilado, redutor...

Perdão, eu sei de situações graves, experiências que mandou fazer com pobres coitados, com um resultado grave, tanto que até fora do ministério se soube e foi a equipa toda chamada à atenção! Saíram de finhinho do projeto, sem um mea culpa. 

Pois é isso que caracteriza o Otávio, ele é a ponte entre um conservadorismo doentio e a pós-modernidade: dá-se muito bem com as versões da verdade e aproveita a liquidez moderna para fingir que não se passa nada, que não participou, que não concebeu!

Eu conheci outro Otávio, um que trabalha arduamente para a elite a que pertence: uma trupe no poder. Protegem-se entre eles. Diria mesmo que dão sinais de terem comprometimentos e cumplicidades que os mantém em trocas de favores. Uns safados! Uns safados é o que são a fazer dos colegas e dos subordinados, estúpidos. São os mais iguais, sem dúvida!

Eu lembro da implicação com as chaves, o número de chaves, as chaves do portão, das salas, das gavetas, dos computadores. Era encantado por chaves. Elas são o símbolo do controle.

Ele até negava direitos e deveres legais! Como se estivesse a impor uma lógica muito própria ao serviço das suas crenças. E, no entanto, em tempos saía-lhe o "articulado da lei" com esguichos de saliva entre os dentes atrapalhados com a língua na dicção.

Às vezes penso se não estudou para padre, tem ar de dar sermões e fazer moralismos, mais uma vez leituras muito só dele, irrefutáveis segundo o seu ponto de vista.

Ele sempre me tomou por parvo! Vinha desejar-te um bom trabalho enquanto me tramava o desempenho do mesmo. Eu aprendi a responder-lhe no mesmo registo cínico - aposto que ele não percebe e me toma por ingénuo!

Se lhe déssemos um cognome seria o cínico ou o misógino? 

Os dois!

É um personagem, um cromo, bem interessante para o seu romance, Joaquim.

Concordo que sim! 


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