Gentes da Serra
A serpente da estrada da serra causa-lhe náuseas. Vai apertada entre as crianças e os adolescentes no banco de trás do automóvel, provavelmente por causa das suas dimensões: magra, baixa, tímida.
A ida foi-lhe apresentada como um ritual: conhecer os futuros sogros.
Ela só conhece algumas cidades e um tetra de aldeias aconchegadas umas às outras. Vai apreensiva, com o estômago a querer saltar fora. Nem tem tempo de brincar com o olhar na folhagem a recuperar o território furtado pela estrada.
Chegam, o coração salta dentro de uma caixa onde é abafado, ela põe-se em piloto automático: polido, educado, civilizado, mais urbano do que era na realidade, as mãos suavam nos bolsos, o frio esfaqueava a garganta, os pés eram de pedra na forma do sapato impróprio para o clima, e tinha fome, que acabou por confessar, fragilizando a figura empalhada que estava a fazer. Rapidamente, os convivas encetaram uma conversa em rede das coisas deles - tanto por falar estando naquelas distâncias, a maior sendo algum analfabetismo da mãe. A mãe que era tratada com adoração e assim chamada mesmo pelas noras. E ela que só chamava de mãe à sua, sentiu-se violentada: não iria chamar mãe àquela senhora que parecia uma avó, que mal tinha tempo para falar com ela, de tal modo se distribuía pela meia dúzia de filhos, suas mulheres, os netos, as festas, as colheitas, as dores, as mortes dos da aldeia, as novidades e as tantas saudades... A senhora era um doce, mas só lhe cabia uma migalha dela - toda se repartia e se gerava e regenerava em pão, couves, cabrito assado, limpezas, e escravidão agrícola...
As casas eram sem plano - melhor, as mais finas assentavam num núcleo conhecido: cozinha, casa de estar, um ou dois quartos e a loja dos animais em baixo; já a casa de banho era um luxo externo, com janela mal vedada, chão de cimento, loiça básica, já afetada pelo calcário, e um frio de rachar...
Os quartos para tanta gente cresciam como favos e pouco espaço tinham para além da cama, uns arrumos minúsculos ou apenas uma cadeira e o teto irregular e rebaixado, muitos sem janela. Pareceram-lhe umas catacumbas e receou sufocar!
O passeio ao exterior foi mais difícil de arquitetar do que imaginara. Julgava que ia fazer turismo! Mas ali só se trabalhava e todos iam ajudar - não ela que não sabia fazer as coisas da agricultura local, nem os caminhos, nem as ferramentas, ou o seu arrumar; também não sabia acender o fogão de lenha, nem ir à horta buscar os vegetais, matar uma galinha, enfim, ficava com as crianças! Sentiu-se mal, serrou os dentes e lá entreteve os miúdos, amorosos, mas excitados.
Um dia, houve tempo de o namorado a passear pelas ruas da aldeia de xisto. Eram mesmo casas? Habitadas? Algumas ainda eram, outras estavam fechadas e tinham sido herança dos filhos, agora em cidades distantes - mas vinham nas férias.
As idosas que viviam nos pequenos habitáculos eram visivelmente secas e arqueadas; estavam a mirrar dentro da pele que se arrumava em foles para caber no lugar onde se mantivessem reconhecíveis a Ti Mercolina, a Ti Berta! Elas falavam cumprimentando os visitantes sem olhar para eles – só de esguelha. Lembrava-se de uma que fazia círculos com o andar e olhava o chão à procura de algo com um nome que a turista não conhecia, e muitas palavras, ou eram repetição de expressões acabadas de dizer, em reverberação, ou ensaiavam um português que ela desconhecia. E custava a acreditar que a senhora e o marido, e antigamente um rol de filhos, tivessem vivido naquele apartamento de pedrinhas espalmadas sobrepostas e telhados do mesmo material, de uma escuridão de pedra da escola, onde a turista aprendera as primeiras palavras e fizera bonecos: a ardósia. E o buraquinho-casa era tão pequeno, e o frio tão cortante.
Uma noite ouviu um grito. A seguir o namorado informou: há fogo na serra, vamos ajudar e tu ficas aqui. Ela enrolou umas palavras de protesto; um “também vou”, ficou registado só na garganta - era noite, não conhecia os caminhos, não percebia nada de fogo -, não sabia muito do que era importante, suspeitou! Deixou passar um tempo largo; a aldeia mergulhada no silêncio total. Saiu à rua já no despontar do dia - não viu ninguém -, sentiu-se sozinha no mundo, desadaptada, inútil, sem meios nem para fugir ou procurar ajuda: o fim do mundo também podia ser ali! Era-o naquele momento!
Depois chegaram todos, exaustos, os guerreiros do fogo, com a batalha ganha, foram comer e dormir. E ela vazia, atormentada, infeliz: só sabia que os negócios de que eles viviam - a floresta de eucaliptos -, se relacionava com a ameaça às suas aldeias, à vida de todos e de toda a natureza, mas eles, no outro dia e no outro a seguir, e nos meses e anos em frente, continuavam firmes plantando e comercializando madeira e eram respeitados na aldeia.
E ela?! Ela sentiu-se tão pequenina naquele mundo paradoxal. Gente tão boa e inteligente que mata e defende e continua em círculos irracionais a criar matança e vida.
A ida foi-lhe apresentada como um ritual: conhecer os futuros sogros.
Ela só conhece algumas cidades e um tetra de aldeias aconchegadas umas às outras. Vai apreensiva, com o estômago a querer saltar fora. Nem tem tempo de brincar com o olhar na folhagem a recuperar o território furtado pela estrada.
Chegam, o coração salta dentro de uma caixa onde é abafado, ela põe-se em piloto automático: polido, educado, civilizado, mais urbano do que era na realidade, as mãos suavam nos bolsos, o frio esfaqueava a garganta, os pés eram de pedra na forma do sapato impróprio para o clima, e tinha fome, que acabou por confessar, fragilizando a figura empalhada que estava a fazer. Rapidamente, os convivas encetaram uma conversa em rede das coisas deles - tanto por falar estando naquelas distâncias, a maior sendo algum analfabetismo da mãe. A mãe que era tratada com adoração e assim chamada mesmo pelas noras. E ela que só chamava de mãe à sua, sentiu-se violentada: não iria chamar mãe àquela senhora que parecia uma avó, que mal tinha tempo para falar com ela, de tal modo se distribuía pela meia dúzia de filhos, suas mulheres, os netos, as festas, as colheitas, as dores, as mortes dos da aldeia, as novidades e as tantas saudades... A senhora era um doce, mas só lhe cabia uma migalha dela - toda se repartia e se gerava e regenerava em pão, couves, cabrito assado, limpezas, e escravidão agrícola...
As casas eram sem plano - melhor, as mais finas assentavam num núcleo conhecido: cozinha, casa de estar, um ou dois quartos e a loja dos animais em baixo; já a casa de banho era um luxo externo, com janela mal vedada, chão de cimento, loiça básica, já afetada pelo calcário, e um frio de rachar...
Os quartos para tanta gente cresciam como favos e pouco espaço tinham para além da cama, uns arrumos minúsculos ou apenas uma cadeira e o teto irregular e rebaixado, muitos sem janela. Pareceram-lhe umas catacumbas e receou sufocar!
O passeio ao exterior foi mais difícil de arquitetar do que imaginara. Julgava que ia fazer turismo! Mas ali só se trabalhava e todos iam ajudar - não ela que não sabia fazer as coisas da agricultura local, nem os caminhos, nem as ferramentas, ou o seu arrumar; também não sabia acender o fogão de lenha, nem ir à horta buscar os vegetais, matar uma galinha, enfim, ficava com as crianças! Sentiu-se mal, serrou os dentes e lá entreteve os miúdos, amorosos, mas excitados.
Um dia, houve tempo de o namorado a passear pelas ruas da aldeia de xisto. Eram mesmo casas? Habitadas? Algumas ainda eram, outras estavam fechadas e tinham sido herança dos filhos, agora em cidades distantes - mas vinham nas férias.
As idosas que viviam nos pequenos habitáculos eram visivelmente secas e arqueadas; estavam a mirrar dentro da pele que se arrumava em foles para caber no lugar onde se mantivessem reconhecíveis a Ti Mercolina, a Ti Berta! Elas falavam cumprimentando os visitantes sem olhar para eles – só de esguelha. Lembrava-se de uma que fazia círculos com o andar e olhava o chão à procura de algo com um nome que a turista não conhecia, e muitas palavras, ou eram repetição de expressões acabadas de dizer, em reverberação, ou ensaiavam um português que ela desconhecia. E custava a acreditar que a senhora e o marido, e antigamente um rol de filhos, tivessem vivido naquele apartamento de pedrinhas espalmadas sobrepostas e telhados do mesmo material, de uma escuridão de pedra da escola, onde a turista aprendera as primeiras palavras e fizera bonecos: a ardósia. E o buraquinho-casa era tão pequeno, e o frio tão cortante.
Uma noite ouviu um grito. A seguir o namorado informou: há fogo na serra, vamos ajudar e tu ficas aqui. Ela enrolou umas palavras de protesto; um “também vou”, ficou registado só na garganta - era noite, não conhecia os caminhos, não percebia nada de fogo -, não sabia muito do que era importante, suspeitou! Deixou passar um tempo largo; a aldeia mergulhada no silêncio total. Saiu à rua já no despontar do dia - não viu ninguém -, sentiu-se sozinha no mundo, desadaptada, inútil, sem meios nem para fugir ou procurar ajuda: o fim do mundo também podia ser ali! Era-o naquele momento!
Depois chegaram todos, exaustos, os guerreiros do fogo, com a batalha ganha, foram comer e dormir. E ela vazia, atormentada, infeliz: só sabia que os negócios de que eles viviam - a floresta de eucaliptos -, se relacionava com a ameaça às suas aldeias, à vida de todos e de toda a natureza, mas eles, no outro dia e no outro a seguir, e nos meses e anos em frente, continuavam firmes plantando e comercializando madeira e eram respeitados na aldeia.
E ela?! Ela sentiu-se tão pequenina naquele mundo paradoxal. Gente tão boa e inteligente que mata e defende e continua em círculos irracionais a criar matança e vida.