No Clube Náutico

Tenho por paisagem o interior do restaurante do Clube Náutico, a vista do teu meio-corpo à minha frente na mesa; do lado esquerdo a vidraça continua, atravessada por veleiros lentos e faíscas que o sol empresta às ondinhas de grão fino. Pausei o olhar nesta azáfama de ruído branco visual e tu questionaste: estás triste?

Eu estava desconfortável, mas talvez não soubesse fazer conversa sobre uma provável intuição de tristeza. Não tivera tempo de compreender. Mas hoje, passados dois anos, consigo ir a esse momento e responder com a pergunta: o que queres de mim? Como és capaz de ser amoral e tolo - que vergonha sinto, por não ter sabido que eras banal - enganado por uma que ama tudo, em particular a tua conta bancária!

A comida, a espetada de lulas com gambas, era só sofrível, o teu ânimo era insuficiente; do vinho nem me lembro! Nos olhos só queimavam os flashes de luz das ondas, as velas às curvas por ali, negras algumas, a estrada pouco cuidada lá em baixo, o empregado com simpatia de avatar, tu outro avatar, não sei qual de nós os três se estava a sentir mais incomodado, e o engraçado é que se mo perguntassem na altura, diria que estava tudo bem, e era verdade! Foi o tempo que me permitiu ver melhor aquele momento e enriquecê-lo com verdades mais intensas do que algum insight que tenha tido na altura - agora claramente desbotadas, rasgadas e da marca Tristeza! Como és tão vulgar? Que mulherzinha manipuladora! Nem sei se mereces! Ninguém merece ser palhaço da corte! Nem um fuinha de sentimentos como tu! Essa mulher enganou meio mundo, roubou tanta gente, aproveitando-se dos afetos que lhe é fácil gerar e da credulidade geral. Mas tu, tão inteligente, como foste cair nessa?! Tens à tua frente um livro aberto de maquiavelismo!

Podemos voltar atrás? Telefonas-me assim que chegas e eu digo: é melhor não, agora com a COVID...e depois o tempo passa, perco o telemóvel, deixo a rede social, e tudo fica dissolvido por aí. Não precisava de cegar os olhos no rio, para não te ver - como me impunha algo em que não acredito explicitamente, chamemos-lhe: intuição.

E tu deste conta ou foste avisado! A tua energia mudou radicalmente, passaste a dar saltinhos, a voz também ficou animada: vamos onde,  agora?, inquirias. A exposição vi-a depois. Comprei uma caneca. Sempre que bebo por ela, lembro-me dos girassóis de plástico na entrada, e o chão de relva artificial; o teu carro à espera para irmos ao Onde. E não fomos a lado nenhum a não ser à esplanada cheiinha de âncoras do teu passado, onde me explicaste porque desejas ser de outra classe social e aprecias as dificuldades de um burguês se transformar num aristocrata! Uma contradição, portanto! Mas eu entendi!

Passámos nos dois sentidos pela terrinha de prédios altos onde ela estava e nenhum de nós sabia. Onde tu agora vais. É um espaço sem glória como as igrejas cogumelo que se enfiam em qualquer loja. É uma loja esse lugar onde estás, onde te preparam para te expurgar daquele símbolo que tanto aprecias: o dinheiro! Mas, ainda mais: ficará aí um pedaço da tua alma! Vais sangrar! Quantos já passaram pelas mãos dela e outros estão em stand-by: não só amantes, também família, pais, filhos - ninguém escapa! Não sei se mereces, se tenha alguma pena de ti! Vale a pena perguntar-te, agora, enquanto fazes a gamba empurrar a lula e o pimento verde enroscado na cebola caramelizada, na mesa do Clube Náutico, faz sentido perguntar-te: vais mesmo ser tão ingénuo e deixar-te enganar pela... Oh, não havia espaço para essa conversa, nem intimidade. Se estou triste? Sabes o que me vai acontecer por causa deste mal-entendido?! As perdas que vou ter?!  

Às vezes, apenas se olha para o rio a fervilhar, passado a limpo por barcos à vela sem gente, para não complicar sentimentos. Metade do que vemos é uma cúpula azul com pedaços de algodão, um Cristo a dizer que é tudo dele e a gente a saber que não, ou talvez a dar-se conta da imensidão do estuário, a ponte americana em gestos de ballet, e o resto da viagem leva-nos para esses aglomerados urbanos com marca burguesa e fútil e lindas paisagens, o Sol a queimar os olhos no sentido de Cascais e nós que fizemos a Linha duas vezes apenas, a pisar terrenos tão perigosos, promíscuos de outras histórias de cada um de nós!

Só mesmo o fim das nossas duas consciências poderá dar paz a esse caminho! O Clube Náutico não ficou particularmente marcado. Há uma certa tolerância à vulgaridade, por lá - estará habituado! Também a Câmara do Comércio no Porto, não foi afetada. Mas algo aconteceu, que ainda hoje não sei explicar!...

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