Primeiras reflexões sobre a minha biblioteca

Um dos melhores presentes da idade é poder escolher recordar um estado mental associado a cada fase da vida. A biblioteca pessoal tem um papel de destaque nessa função autobiográfica. A minha não emagreceu com transplantes, destralhe, divisão por separação ou divórcio: mantém-se intacta. Por isso, nela há uma arqueologia de tempos, modas e maneiras de ver. Enchi-a descontraidamente, sem impulsos de obsessão colecionista: um riacho calmo de correntes de doce curso ao acaso da passagem por pequenas livrarias, da feira do livro ou de alfarrabistas, cortado pontualmente por vagas tendências associadas à profissão, ou a curiosidades do momento. Tem também deliciosas revistas que guardam as viagens de sonho que não fiz, e os manuais das que realizei também constam, e até coisas soltas e dissonantes, mas que me importava ler. Uma tímida penetração newage, só para saber o que era, uma pitada de orientalices. Mas houve expulsões: umas tantas ofertas que remeti para bibliotecas externas. Na minha, há ainda o lamento pelos livros que li e perdi o rasto, porque não foram devolvidos ou não me pertenciam. Porque só tarde me tornei possessiva com os livros. Durante muitos anos, lia-os e pronto! Foi quando a saudade e as dúvidas apertaram, que percebi que não segurava as memórias em mim, e uma parte delas se fora e com elas eu própria! Foi aflitivo perceber como os livros eram uma extensão da consciência de mim, e que ela era perecível sem eles! Foi desde essa descoberta que me tornei guardiã dos meus livros! Pronto, não vai ser hoje que revelo mais da minha biblioteca. 

Mas vem esta verborreia a propósito de ter ido buscar à minha biblioteca - desenterrar, melhor dizendo - os ocasionais livros de alternativas autoterapias, que me fazem sorrir, de tão ingénuos. Mal os folheei na altura! Faltou-me a paciência e a aceitação de me autocomandar mediada pela informação benevolente e infinita destes livros, associada a muitos dados "científicos" das ciências de cá e de lá em alternativa, que me faziam apetecer arrumá-los, ir ver um filme, ou ir tomar café com amigos. E foi assim que os livros ficaram quase virgens, sem o namoro a que se propunham com o meu Superego. Eu que ando de amores ilícitos com a minha criança livre, estava indisponível e continuo. Coitados! É que sou mais de namoros com o Id! Mas um Id bonito, criativo. E um Eu autossuficiente, no topo da hierarquia, em vez de entalado entre a biologia e a civilização, capaz de compromissos com as limitações decorrentes do Mundo. E daí?! Preciso lá do super?! Hoje acho estes livros deliciosos, premonição anedótica da mentalidade do autocuidado que próspera por aí - fora da minha biblioteca -, ficai sabendo em primeira mão! Fora!

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