Uma ligação estranha a um lugar

É um local muito apreciado! Os turistas costumam querer fazer-se fotografar ali, com o canal por cenário e os coloridos barcos de matriz fenícia. Também ela já tivera que posar algures por lá, sempre constrangida, por um não-sabe-porquê e pelo contraste com a satisfação dos seus companheiros, em cada viagem - umas três; por aí. E iam aos doces típicos da região cheios de gemas - que até isso ela detestava na altura, agora não tanto. Foi mudando com o tempo, mas esta repulsa pela cidade que todos adoram é visceral e mística. 

Logo na primeira vez, num grupo de família alargada do marido - hoje e desde há muito, ex-marido -, passeavam num qualquer jardim, mas a ela só lhe dava vontade de fugir:" vamos embora, vá lá, não gosto disto!" Nem se lembra se o chegou a dizer, talvez sim, pois nessa altura era muito de boca no coração, e então julga lembrar-se do comentário e do olhar esbugalhado: "como é possível não gostares disto?!" E lá aguentou, contariada, e nunca mais se esqueceu daquele enquadramento: as árvores, a náusea, a vontade de fugir e de existir por si mesma, sem trapalhadas familiares... E mais tarde, o canal e os seu barcos lampeiros, riam-se de novo nas fotos, dezenas de anos mais tarde, menos sofrida a mulher: a foto ficou engraçada, naquela fase em que estava até mais magra, preocupação que não tivera na primeira vez, pois magreza era o seu normal. E com dois ou três giros, a companhia mostrou-lhe a cidade, que ela viu como vulgar e urbana, tirando o canal, que não lhe dizia nada - e porquê?! E depois pessoas de quem ela não desgostava ou até amava (seria?) foram registar nessa cidade, momentos intimistas, que lhe divulgaram nas redes sociais. E ela, que não gostava do sítio, ainda esboçava a racionalização: ainda bem que estão verdes, não é raposa?! Pelo menos ali não a enciúmam! Não gosta do sítio! Nunca gostou: adivinhou o trauma futuro, e talvez ainda nem toda trama se tenha feito saber.

Há nessa cidade uma vivenda, onde uma princesa bailarina e uma gata e, outrora, um príncipe com quem ela foi a almoços de trabalho - porque aos outros ele disse que já não lhe apetecia ir mais, e depois passou um ano e ele fez um convite surpresa, que não era particularmente do agrado dela (mas não foi por isso, mas para marcar posição), que disse que já tinha planos; ele que tivesse convidado antes! Foi desagradável?! Alguma vez haveria de ser ela a ditar as regras. E a gata, e a bailarina daquela cidade, tão finas as duas, sensuais e interessantes, ambas de tutu e ele de fraque, que se deitavam tão cedo e nunca saiam à noite, dançavam esquemas de salão, solitários, com a gata a enrolar-se nos pés do príncipe... hoje estarão sozinhas? Esta situação, era de resto passada, para o rapaz interessante, que amuou quando ela vincou posição de novo, não aceitando liderar um certo projeto seu: principesco demais para si.

Ai aquela cidade para onde os amantes recentes e até os pré-amantes se dirigem, às vezes alojados nas imediações com cascatas, pequenas piscinas e muita vegetação inebriante. E bebem certamente vinho branco após a cruzeta dos cálices finos e compridos, ao som de uma conversa sensual codificada, mordida nos lábios carnudos e conduzida por muitos gestos sinusóides das mãos, quais batutas de orquestração da contra-alto brasileira e do simulacro de homem conservador e literário, em suas notas graves e encorpadas. 

Ai, e fotos em passadiços; ovos moles e caminhadas; sexo reverberante e tanto fragmento de memória - até do que nunca aconteceu, nem esteve para acontecer-, como ser ela apresentada ao casal amigo que convidava, saudoso, o seu querido (seria?) - mas agora já não importava; eram memórias de outros, que ela imaginava suas: comeriam uma paella?

Sempre aquela marca: aquela primeira vez, sem âncora emocional alguma, a predizer as vezes futuras da sua infelicidade no lugar, ou um sentimento do mesmo tipo por não ter estado lá, em desfavor de outras (raposas). Não tem qualquer explicação racional! É melhor deixar de se impressionar com premonições, infere; e logo duvida: terá antes sido um calvário que lhe estava destinado para a sua autonomia?

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