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A mostrar mensagens de fevereiro, 2022

Adeus às coisas

As coisas sobrevivem-nos. Esta é uma ideia chocante! A "minha vida" em contagem decrescente, em convívio com obsoletos objetos, móveis, lápis, a casa, a roupa - tanta coisa que teima em ficar depois de mim! De mim! Eu, que escolhi, trabalhei e adquiri cada uma delas! Eu que as desprezo e relativizo o seu valor: apenas coisas! Elas, em vez de mim, podem ficar! Sinto uma náusea. A descoberta do valor temporal das coisas e de mim, sujeito, choca-me! Não consigo inventar ou esventrar uma ficção que solucione, ou ao menos alivie, esta sensação de iminente perda total! É incrível! É inacreditável e todos os seus sinónimos. Fico perplexa com um lápis que não se gastou nas últimas décadas. Há muitos mais! Há muitas coisas que duram, perduram. Outras expulsei, doei, eliminei - até essas me visitam a memória. Como livrar-me do passado que me ultrapassa no futuro, que durará, que será menos punido pelo tempo?! Consumo muito café: acelera-me o metabolismo. Penso muito! Canso-me! Amo! Tan...

Um sonho em tempos de guerra

O homem era alto e vistoso e muito interessado em  iniciar a relação com Helena. Tinha, no entanto, que levar a família de barco, numa espécie de procissão, para fora do país, até passarem a fronteira, remando contra a maré. Aconteceu que, ao chegarem perto da fronteira, - que era uma queda de água artificial, em que a água corria ao contrário da direção lenta dos barcos -, uma barreira de fogo surgiu repentinamente ao longo da linha superior da barragem e, depois, contaminou todo o declive onde a água escorria, até ao limite inferior, junto à superfície. Voltou a subir, essa barreira de fogo, de modo maquinal até ao ponto superior da barragem. A família - mãe e pelo menos uma criança -, foi corajosa, apesar do susto; já o homem, desmaiou e, de futuro, fazia-o sempre que contava ou se falava do acontecido.  Regressou, veio ter com Helena. Enquanto o aguardava, a namorada do homem belo, pensava que não sabia o que lhe oferecer, como se fosse o aniversário dele. Estava em duas p...

Au Martinique

Porcy teve um pesadelo em que lhe roubavam o gato após o namorado insinuar a viagem à ilha francesa. A prima fora lestra a atrai-lo pelo lado hedonista. Iria pelo prazer de ir. De resto...era o resto, o que menos importava! A prima era o veículo do prazer da viagem! Porcy veria o seu gato ir, de prima! Cinquenta por cento da percepção de felicidade é genética, os outros cinquenta distribuem-se por fatores do contexto e da personalidade, alguns ligeiramente mutáveis. Então será sobre esses que ela tem de exercer o seu foco libertador. É que não merece a dor, a dor da perda do vínculo primário, a dor dos jograis e dos cátaros, a dor de corno andaluz, a dor das canções e dos poemas a sangrar, nem a dor - muito menos essa - dos obsessivos assassinos! Ah! Não! Há que treinar a dialética (de si para si) do pensamento racional, encorpar a dor em narrativas e imagéticas de expulsão, falar com cadeiras vazias  como Perls, amolecer os excessos em respirações diafragmáticas, mente plena, ment...

Palhavã

Palhavã era um nome que estava alojado na minha memória com umas pernas altas em pijama hospitalar e um rosto que pouco conhecia, mas que era dO Amigo do meu pai. Uma amizade que se estendia entre as mães de ambos e havia visitas e cartas entre elas, o que era muito estranho, conhecendo o meu lado paterno. E depois disseram-me que morrera e eu nem entendia bem a morte, muito menos a de um amigo com letra grande. E assim guardei na memória o assunto, para compreender mais tarde. Naquele dia, ela marcou encontro comigo à saída do hospital de Palhavã. Apareceu no anoraque amarelo que eu lhe dera, o cabelo também amarelado, o que me chocou, e um sorriso tímido e preocupado. Tinha um nódulo na tiróide e precisava de fazer um exame. Acompanhei-a à Avenida da República e vi como se apoderou do medo e não o contrário. Recebidos os resultados, era benigno e ficava sob vigilância. A primeira memória de Palhavã, afinal andava a fazer mossa: sempre que subia do metro na praça de Espanha, sempre qu...