Palhavã

Palhavã era um nome que estava alojado na minha memória com umas pernas altas em pijama hospitalar e um rosto que pouco conhecia, mas que era dO Amigo do meu pai. Uma amizade que se estendia entre as mães de ambos e havia visitas e cartas entre elas, o que era muito estranho, conhecendo o meu lado paterno. E depois disseram-me que morrera e eu nem entendia bem a morte, muito menos a de um amigo com letra grande. E assim guardei na memória o assunto, para compreender mais tarde.

Naquele dia, ela marcou encontro comigo à saída do hospital de Palhavã. Apareceu no anoraque amarelo que eu lhe dera, o cabelo também amarelado, o que me chocou, e um sorriso tímido e preocupado. Tinha um nódulo na tiróide e precisava de fazer um exame. Acompanhei-a à Avenida da República e vi como se apoderou do medo e não o contrário. Recebidos os resultados, era benigno e ficava sob vigilância.

A primeira memória de Palhavã, afinal andava a fazer mossa: sempre que subia do metro na praça de Espanha, sempre que me ia divertir na Gulbenkian, lembrava as pernas altas, escazeladas, a abanar dentro do pijama hospitalar e a súbita morte! A morte espantada vivia ali, para mim! E naquele dia em que ela apareceu no anoraque amarelo, arrepiei-me! Depois relaxei, com o diagnóstico. Uns vinte anos mais tarde, nem passou por Palhavã; com metade do volume habitual, foi direta para um estágio de ante-morte, apenas uma semana, sem mais poder falar, por cancro da tiróide altamente metastizado e com células muito indiferenciadas, dizia o médico, em salinha própria para dar más notícias aos familiares, mas eu já intuira!

No dia do anoraque amarelo critiquei a cor do cabelo, como as filhas "experts" fazem e ela seguiu posteriormente a sugestão. E, da última vez que conversámos - por entre palavras e silvos -, mandei-a voltar às urgências e garanti que tudo faria para que conseguisse ficar internada. Ficou. Um pouco pela minha agência, um pouco pelo acaso, e ainda pelo auxílio de anjinhos do centro de saúde dela. Lá foi para o silêncio, a morte controlada, a perda do poder de falar, e, finalmente, a perda total.

Depois fui procurar investigação sobre o cancro e derramar a angústia no intelectualismo, que é o meu território seguro, até ter acumulado algum conhecimento mais ou menos inútil para mim.

No velório, ao meu lado, outro anjinho recomendava-me que fosse ver da minha saúde, por estar com uma dor prevalente na garganta; foi uma companhia doce, que muito em breve iria partir de doença idêntica e naquele dia nem o sonhava. A vida assim a escrever histórias com coincidências, estranhas, injustas...

Quando limpávamos a casa dos haveres da mãe, pude perceber o que ela se divertia com a roupa que eu lhe dava e com um autêntico baú de memórias construído com roupa nossa e dela, de todos os tempos! No seu sótão viveria vidas secretas, paralelas e viagens no tempo. Certamente que sim! Era o seu paraíso de vaidades. Só seu. Só para ela mesma ver! Mummy! Sempre a achei uma menina! Na adolescência, criticava-a; eu tão crescida, e ela a idolatrar a infância! Olá menina-mãe, penso que gostarias de saber que te segui o rasto, embora no pensamento: livre, criativo, desapegado de interesses.

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