Um sonho em tempos de guerra
O homem era alto e vistoso e muito interessado em iniciar a relação com Helena. Tinha, no entanto, que levar a família de barco, numa espécie de procissão, para fora do país, até passarem a fronteira, remando contra a maré. Aconteceu que, ao chegarem perto da fronteira, - que era uma queda de água artificial, em que a água corria ao contrário da direção lenta dos barcos -, uma barreira de fogo surgiu repentinamente ao longo da linha superior da barragem e, depois, contaminou todo o declive onde a água escorria, até ao limite inferior, junto à superfície. Voltou a subir, essa barreira de fogo, de modo maquinal até ao ponto superior da barragem. A família - mãe e pelo menos uma criança -, foi corajosa, apesar do susto; já o homem, desmaiou e, de futuro, fazia-o sempre que contava ou se falava do acontecido.
Regressou, veio ter com Helena. Enquanto o aguardava, a namorada do homem belo, pensava que não sabia o que lhe oferecer, como se fosse o aniversário dele. Estava em duas pequenas divisões que pertenciam a um ginásio e encontrava-se só, naquela altura. Havia, sobre o banco de apoio comprido, um calcanhar de sapato, que tinha sido cortado e que continha uma almofadinha protetora, como aquelas para o tendão de Aquiles calcificado não magoar o pé. Pareceu-lhe a prenda ideal, até porque pertencia a um atleta famoso, a treinar no momento naquele ginásio. Pensou roubar aquele aparato e até acrescentou outro pedaço de sapato, mais precisamente, outro calcanhar. Fechou um contra o outro, em concha, e meteu-os dentro da mochila. Verificou o teto à procura de vídeovigilância e confirmou que a havia. Ficou muito envergonhada e dissimuladamente repôs o aparato onde o tirara, sentindo-se infeliz por não ter nenhuma ideia de prenda para o belo homem que voltara para ela. Já no exterior, ele disse-lhe que não aguentava a guerra, que estava traumatizado com o que vira - referia-se à barreira de fogo que descera e subira como uma lâmina e que o fizera desmaiar - e afogou-a num beijo sôfrego "para esquecer tudo" e assim fugir da situação "amando-se". Ainda se lembra, Helena, do beijão do homem belo, alto, sedutor! Mas faltou-lhe o ar ou a vontade, apesar de tudo, e prostrou-se a pensar: não, ou porque não?!
Não sabe o que se seguiu, pois acordou ou teve um apagão de memória. Seja o que for - que sonho estranho! Sem dúvida sobre a guerra na Ucrânia, o papel dos desportistas como almofada, a questão do calcanhar de Aquiles, o medo do fecho dramático da fronteira, a vida interrompida, mesmo na sua já interrupção, naquele caso, do casamento, uma tecnologia surpreendentemente robótica - o fogo em forma de muro, muro de Berlim, e a sua descida e subida como se se espalhasse num gás rasteiro, mas num processo muito rápido e controlado, e a progressão lenta e coletiva, dos barcos, contra a corrente. E, por fim, um homem cobardolas e uma mulher e uma criança muito mais nobres e resilientes. Acordou numa posição ambivalente e desconfortável, a sentir-se pouco ética, atrapalhada e trapalhona, sem saber o que sentia pelo homem e o que queria fazer. Seria Helena, a Europa?