Memórias
Hoje chove a cântaros. Lembro o som da água a cantar nos gargalos, a sair ou a entrar nos cântaros de barro que guardavam água fresca no loiceiro da aldeia, abaulado para se poderem virar os pesados e bojudos recipientes, facilitando a saída da água para os copos de talha bastante formatada. A água sabia a hortelã. Talvez não a hortelã, mas a algo verde e fresco. Sabia a quê? À infância. Íamos buscá-la à fonte, a alguma distância e com esforço. A água. A infância.
Combinávamos a composição do grupo e a hora. Metíamo-nos pelo atalho que passava pela bagaceira. O cheiro forte, o monte de entulho negro à porta. Quem lá estaria dentro e o que faria? Era para mim como uma central nuclear, com especialistas obscuros dentro, em equipamentos incompreensíveis, suor e labor alienados; ainda por cima, homens: estranhos seres de que conhecia poucos exemplares e mal. Mas o caminho era trilhado a bom ritmo, sem tempo para apreciação de paisagens. Apenas me refiro a elas porque se me instalaram na memória e me atraíram o olhar, sempre, e as perguntas, as emoções sem palavras para nomeá-las; a curiosidade, o receio, o utilitarismo, a fábrica, o trabalho árduo; a infância desacreditada pelos adultos, a fusão de ideias: o nuclear e a bagaceira, que têm em comum?! Mas têm! Eu é que não sei o quê, só que sim!
A arte de firmar o garrafão contra a pressão da superfície da água de modo a centrar o gargalo com pontaria na corrente generosa da fonte, junto ao cano de ferro; a arte de, quase já cheio, operar em sentido contrário, para que não se afundasse. Ficar em posição acrobática, embora sentada no pequeno muro adjacente; conversas por meias palavras, namoricos, insinuações, cuidados para não dizer demais...o muro caiado a segurar a terra e o cano da água que corre fluente, farta, sem torneira a condicionar e enche uma pia que vaza para outra continuamente. Os animais abastecem-se ali. Mulas, burros, vacas. Ficamos parados, imóveis, a vê-los com um misto de receio e admiração pelo seu porte, os seus urros e falas, o seu bufar e sacudir das moscas, a sua potência e cheiro forte - a vida a saltar à nossa frente -, e depois partem e dão a vez a libelinhas, louva-a-deus, abelhas e vespas, passarinhos, moscas e moscardos, uns mais simpáticos, outros mais temidos. Todos se regozijam com a fonte de água generosa, pura, melhor que a engarrafada. Uma estranha sensação de gratidão pelos donos que assim permitem a comunidade servir-se de água tão boa, o Sr Jaiminho, o Sr. Jaime Grande. Mas não era sempre claro que tivéssemos autorização, ou ter-se-ia de fechar algum portão, sem falta?! O aroma, o sacrifício, a pressa - que as raparigas trabalhavam. Eu não. Tinha essa noção de que era uma privilegiada. Na volta, íamos pelo quintal dos perus. "Pirum velho!". "Glugluglu" - respondiam-nos! Aparecia a dona a ralhar. Fugíamos, de passo atrapalhado, carregando garrafões e canecos. Canecos azuis. Tinham força as outras garotas. Eu não podia imitá-las. Por vezes iam mulheres, raramente rapazes. Fazíamos grupo, sei lá porquê?! Talvez para se ter tempo de pôr a conversa em dia. Ou porque era tradição. A vida era assim, sem queixas, sem sonhos grandiosos, sem grandes tricas...pequenas coisas do presente... Só me lembro de coisas boas, a água a cantar na boca dos cântaros. Hoje estou calma, a ouvir chover, sem sonhos grandiosos, mas quase sem presente, não fora o canto da chuva trazer-me para aqui-agora. Mas logo me levou para a memória de outro tempo e lugar. Lá atrás.