O Enxoval
Quando quero referir-me a um rol de coisas, geralmente inútil, designo-o por enxoval.
Quando era pequena, havia essa estranha coisa do enxoval! Via as mães pôr numa arca: naperons, lençóis, e outros panos. Ofereciam às garotas, desde pequenas, tecidos bordados, aprimorados, úteis, para um futuro em que seriam mulheres casadas.
Eu quase não tinha nada. Mal me apercebi da congeminaçao para nos formatar, resmunguei e deliberei que não queria enxoval. Tomei-o por violência contra a autodeterminação do meu futuro, mas não pude impedir todas as ofertas. E assim, um paninho de tabuleiro da avó amorosa, ainda vive na minha casa - vi-a comprá-lo e não percebi ao que se referia; foi a primeira oferenda. Mais tarde, tive que perdoar a avó por não vislumbrar a minha emancipação.
Às vezes, as mães abriam as suas próprias malas de enxoval, onde residiam lençóis, atoalhados e rendas inúteis, que pareciam guardar o futuro passado. Sonhos. Não os "metiam a uso", por pena, diziam, mas era mais porque não cabiam na realidade! Eu compreendia-as bem, desde cedo vi que ser dona de casa e casada, não tinha qualquer graça, ao pé dos sonhos da adolescência.
Não deixava, no entanto, de espreitar as malas, quando elas se abriam vaidosas, para mostrar os sonhos defuntos, os panos arrumados como mil-folhas, perfumados com naftalina, provavelmente. Espreitava porque aqui e ali havia alguma beleza, porque era uma arca mágica cheia de mensagens enigmáticas, porque era também um túmulo e, abri-lo, um ritual feminino, embora houvesse mães progressistas que faziam enxoval também para os filhos! Mas eles não ligavam! Já as meninas, aceitavam, protestavam ou exigiam o resgate da sua infância ou juventude, como era o meu caso! Para algumas, era como a menarca! Um destino anunciado.
Nas conversas entre nós, não me lembro de qualquer conversa sobre o enxoval ou sobre o futuro. Talvez a profissão. Eu queria ser advogada para defender as pessoas das injustiças. Vivíamos num horizonte temporal pequeno, anichado no presente. Música, filmes, relacionamentos, cintas e collants, notas escolares, jogos, e algumas histórias mais extraordinárias de alguém! Falávamos sim, da nossa vida confinada por sermos meninas, das nossas transgressões e melhores métodos de disfarce, de novidades, de tabaco, de cafés, de livros, de professores e colegas, de como usar maquilhagem sem que os pais notassem... queríamos lá saber da arca, da mala, ou dos raios que partissem esse destino caduco que não queríamos ter!