O Seu Lado Solar
A brisa flui, doce, pontualmente urgida por pequenas rajadas que logo esmorecem no traquitar dos ramos da vegetação farta, mas tranquila, quase de jardim, lá fora. A casa volta a ficar iluminada pela luz indireta do pequeno morro cor de terra em frente à janela e das poucas nuvens de passagem lenta, mas determinada, ...e tudo lhe reenvia a luz daquele sol nostálgico que antecipa a primavera. Os amarelos e vermelhos pálidos-aguados da luminosidade encaixam perfeitamente na memória da casa do amigo. Estava a vê-lo de nariz empinado na direção do sol, a dizer-se feliz por estar ali de nariz empinado para o sol - tão só isso! Era feliz! Ela fixava-lhe o perfil, e sem querer apreciava o seu estômago dilatado, em bola - também este lhe parecia em regozijo e empinado. Nada afetava o amigo! Endurecera na política desde a faculdade e há menos de uma dezena de anos que a abandonara, de pútrida, a definhar... "Quanto contribuira para esse mau desfecho?", era conversa que não sabia fazer com o amigo. Era um homem que se ocupava muito com poucas paixões: comer e beber; colecionar. Colecionar, em particular memorabilia. Muito específica. Acima das suas possibilidades financeiras. Endividava-se sistematicamente. Com orgulho. De nariz empinado, pedia às vezes a Lídia, umas moedas para no dia seguinte apanhar o metro. Para ir trabalhar. Nada parecia preocupá-lo. Nada parecia, que não quisesse que parecesse: era um mestre do autocontrolo e da sua persona. Dali, da casa que habitava, que o sol beijava demoradamente pelas tardes e onde os aviões pareciam ameaçar chocar antes de trovoarem e despejarem enchentes turísticas, lá para trás, no aeroporto da Portela, ele recebia a amiga com um elan de felicidade soalheira, esmerava-se nos petiscos e bebidas açucaradas que ela trocava por uma "cervejinha". Tinha sempre alguma novidade para ela e novas aquisições para mostrar, da banda de paixão, há muito extinta, em que era viciado! Viciado comprador de símbolos. Viciado em Mundo, como se de tudo tivesse lido previamente num manual - que muito aprendera no partido, na distrital, em certa embaixada! Fiel! Para sempre fiel à ideologia da juventude, à música da juventude, à juventude em si mesma, ao Sol da sua varanda, ao lugar onde quase sempre viveu; resistente às perdas, ao afunilamento das amizades, às carreiras políticas do ex-colegas. Parecia ter estado no lugar certo, no tempo de frutificar políticos: era da turma deles. Aos cachos! Andou por lá. Hoje está limpo dessas vidas. Saiu. Os outros polarizaram-se, uns em catástrofes eleitorais e outros em glórias. Ele ainda hoje empinará a autoestima e o seu balão gastronómico, cheio de desejos concretizados no eBay. Everyday! Nos intervalos toma sol na venta, feliz!
Ela pode vê-lo, agora só em imaginação, quando o Sol lhe beija a casa, aguado de pousar primeiro no morro junto à janela, passear pelas nuvens que se esgueiram na brisa, feliz. Feliz? Quem está feliz? Sabe lá?! Tudo, todos! Trazem-lhe um beijo. Sente-o na face. É dele: - "Olá, como estás?!" - "Bem, mais ou menos..." e lá começa ela a desfiar o rosário das maldades, enquanto ele lhe prepara o "melhor petisco do Mundo" e a leva para a varanda solarenga. O resto, já sabem!
Saudades dele!