O ovo de Clarisse

Voltei à Clarisse. Tinha-a deixado para trás enrolada em angústias: eu e ela. Desde que a vi num vídeo que me começou a ler os seus contos, com a voz arrastada, sopinha de massa, ar de mimo e aquele jeito de desenhar olhos, exótico, e a boca a derramar realidade, como sangue numa ferida recente. Tudo nela encanta e dói! 

Então ela me tem contado os seus contos antes de eu adormecer. Hoje dei-lhe uma hora do dia. Ele já vai alto, os pássaros devem ter cantado, os ramos adormeceram ao sol, sem bulício e eu, ouvi apenas a Clarisse contar-me O Ovo e a Galinha. Por vezes, pedi em súplica: "pare aí garota, me deixe pensar" - e usava o tempo para me sentir metafísica - e eu nem sei o que isso seja -, mas era um imperativo de transcendência que me acometia. Clarisse não comentava. Retomava, tranquila, a sua leitura, ou o seu contar do ovo, quando eu me dispunha a ouvi-la! Vi Moisés, de Frida Khalo! Ouvi uma filosofia meio-espírita, que talvez conste em algum evangelho não corrompido junto a um qualquer mar no mediterrâneo, tresandando a morte, sal, negrume, rubedo, ardil, seca; e o albedo?, a brancura do ovo, que ela contava: pura alquimia. E se não foi alquimia, alguma sociedade secreta espiou o seu pensamento. Mas isso foi há tanto tempo, ainda o ovo crescia nela! Agora andará por outros agentes. "Clarisse" - pensei, mas não disse -, "você me incomoda com seus contos, me remexe, me paralisa, ou projeta para outras instâncias. Se voltar para si, já sabe, é porque sou masoquista. Agora volte para o livro"  - parei de ler e continuo ouvindo o seu remoer persistente, cadenciado, já sem sentido. "Por favor fique lá! Você é demais para se viver com! Fique! Se abstenha de falar em meu ouvido! Eu entendi a filosofia do ovo. Um pouco! Me perturbou, até!"

* Todos os Contos, Clarisse Lispector

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