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A mostrar mensagens de maio, 2022

Zimba

- Que frio, Zimba! - diz ela. - Protege-te aqui debaixo - cuida ele. Ao bafo da tarde segue-se uma surpresa gélida no ar. Chuvisca. Os dois, sob o espesso sobretudo, saem da casinha coberta com hera. Dão uma corrida. - Amanhã... - hesita ela. - Sim querida, amanhã vou-te levar a Lisboa. - Mas, não é cansativo para ti?! E além disso tens os compradores a visitar a casa. - Mudei a data. Não te preocupes. Não se preocupava! Os seios arfavam. Já dentro do carro, ela chorava em silêncio; os pingos de chuva a modelar-lhe o rosto. Ele a conduzir; o olhar focado na estrada. Ela revezava-o no regresso. Nas suas mãos, o Ford seguia a estrada ondulante como um zombie.  A comida soubera-lhe mal, um sabor a metal na língua concorrera com a caldeirada de peixe do rio. Regressados a casa, subiram para o quarto, que se mantinha sem porta ou parede, no andar de cima. A pintura amadora das paredes, feita pelo homem, era naif talvez, com espirais de desenhos populares, e a decoração incluía xailes so...

Miss Mena

A turma do décimo tinha aquela composição: grupinhos, parzinhos, uma certa competição pela nota; uns da Avenida de Roma, outros nem tanto. A Mena tinha penteado à Malvina da telenovela brasileira, embora a franja se franzisse depois de esquecer o alisador. Não tanto quanto as saias rodadas de tecidos florais, num estilo um pouco fora de moda, mas a mãe era costureira. Ninguém se importava com a roupa da Mena, que tinha uma expressão de rosto delicada assente num corpo de mulher - não dera por crescer! Debatia-se sem grande sucesso para arranjar melhores notas - ficava pelo rés-vés; tinha um namorado também alto, um pouco mais velho, que a vinha esperar ao portão, mas de quem fazia mistério.  Um dia, correu um rumor que, ainda na fase imperceptível, zuniu e varou veloz como uma rajada de vento, fustigando a turma em movimentos de seara: "qualquer coisa, vejam, que estranho" - e mais comentários que de novo se fundiam e texturizavam em zumzuns. Finalmente veio-me parar às mãos ...

Clarisse e as Formigas

Clarisse não tinha ficado estampada entre as folhas do livro da primária, a contar formigas. Saira dele pela calada, vindo apreciar o labor das abelhas e aprender sobre os movimentos precisos que lhes permitiam conversar à sua maneira. Às vezes, de papo para o ar, numa clareira, vigiava os bandos de pássaros e os de patos; imaginava outras tantas ligações a constelar na floresta, nos céus e mares, entre os animais, as gentes e suas cidades. E no futuro, quando isso se soubesse?! Clarisse sentia um impulso para a revelação, mas a ninguém conseguia contar. Às vezes tentava - o quê Clarisse?!, a mim é que...; e não voltariam ao tema. - Clarisse, não me interrompas, deixa-me acabar. Acabar por dar uma desculpa para não ouvir no tempo ditatorialmente destinado à fala de Clarisse. Não havia tempo, oportunidade, vontade de alguém enxamear com Clarisse. Logo ela que tinha umas ideias sobre isso de dançar, fazer bando, pandã, e contagiar tudo! Tingir! Texturizar! E até à distância: Wallace e Da...

Madressilva

As copas dos pinheiros mansos recortam ondas no céu pálido, ao anoitecer. Contêm, num manto espesso, todo o palrear dos últimos pássaros. Os ninhos estão prontos. A gata da rua clama por vida nova. Tudo se apronta e eu lanço o fio do olhar à madressilva. Procuro, fixando a vista, os recantos onde escondia saquinhos de dor. Em tempos, salpiquei a planta com miradas sofridas por dó de mim. Ainda não a limpei. Ainda lá poisa a memória e reencontro os alçapões. Porém, o olhar já se distende pelo ondular dos pinheiros, acompanha a imensidão da noite que se acomoda nas copas, mansas e idosas, donas da contenda do dia, plenas de presente e prenhes de primavera. Tanto! E eu deixo para outro dia o trabalho de desempacotar as dores antigas. Aspiro o aroma forte da madressilva. Suspiro. Aguardo. A noite deita-se no pinhal. Já não ouço os pássaros, nem a gata. Agora, um mocho ao longe; o repuxar do travão de mão. Deixo-me estar! Ou ir! Uma azáfama, quase imperceptível, por certo de contentamento f...

O quinto filho

Depois de quatro filhos e alguns enteados a Né vem completar o quadro com o seu quinto assumido. De ambos os lados - leia-se, dele e dela -, há uma harmonia perfeita de objetivos. Nunca escolheriam alguém fora do leque: sem estatuto ou dinheiro. Ela tinha que ser bonita e alegre, claro!; ele, sem barriga. Entretanto, o homem é picuinhas e ela é menos "bem" do que se faz parecer e mais aflita com as contas. Mas é empresária de sucesso, se não hoje, no passado. E isso chega! Né não tem demasiado tempo para dedicar a Afonso, o que é ótimo, para não dar sufoco! Os outros filhos servem de entretém e já quase não dependem dela, mas lá lhe vão ocupando o tempo! Filho é parasita, mesmo! E há a querrucha, mais tardia, mas de boa lavra, que garante vivacidade familiar e a ligação a uma importante fonte de rendimento: o seu pai!  Afonso é sério, quase sisudo, porém acha-se muito fino de humor e de outras coisas; é introvertido e amante de literatura. Escreveria bem, se escrevesse alguma...