Zimba

- Que frio, Zimba! - diz ela.

- Protege-te aqui debaixo - cuida ele.

Ao bafo da tarde segue-se uma surpresa gélida no ar. Chuvisca. Os dois, sob o espesso sobretudo, saem da casinha coberta com hera. Dão uma corrida.

- Amanhã... - hesita ela.

- Sim querida, amanhã vou-te levar a Lisboa.

- Mas, não é cansativo para ti?! E além disso tens os compradores a visitar a casa.

- Mudei a data. Não te preocupes.

Não se preocupava! Os seios arfavam. Já dentro do carro, ela chorava em silêncio; os pingos de chuva a modelar-lhe o rosto. Ele a conduzir; o olhar focado na estrada.

Ela revezava-o no regresso. Nas suas mãos, o Ford seguia a estrada ondulante como um zombie.  A comida soubera-lhe mal, um sabor a metal na língua concorrera com a caldeirada de peixe do rio. Regressados a casa, subiram para o quarto, que se mantinha sem porta ou parede, no andar de cima. A pintura amadora das paredes, feita pelo homem, era naif talvez, com espirais de desenhos populares, e a decoração incluía xailes sobre as arcas e  colcha de retalhos sobre a cama. E rendas nos lençóis... Um caos de cor e berloques, a que não se conseguia habituar. 

Amanhã, a "operação". 

O homem, estirado na cama ao lado dela, repousava o olhar no teto. A respiração era funda e arrastada. Era o bastião da mulher, desde que a fora buscar do Algarve para Lisboa, para tratar o cancro. O seu corpo esguio, bem ancorado na bacia, as pernas deliciosas, prenderam-no na primeira visita. Não mais a largara. Prometeu acompanhar a luta contra a doença. Assim fizera. E depois levou-a para aquela casinha pequena no vilarejo alentejano. Tinham sido felizes, apesar das tomas de medicamentos, dos enjoos, das dores. Tinham sido um casal. Passeavam nos prados extensos na primavera, navegavam o rio no verão, liam ao calor da lareira no Inverno. Os anos passaram demasiado lentos. Agora era mais um outono e ela precisara mentir: uma operação, que não o era, ou talvez sim. Uma libertação era também uma operação. Cirúrgica também era uma boa adjetivação do que ia fazer. Ele continuava de olhar preso no teto, impávido.

No dia seguinte, o ti Manel encontrou o homem e a mulher sem bafo. Saiu a gritar para a ruela. Juntaram-se-lhe outros aldeões. Chamaram a polícia.

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