Rapto
Estava a ver uma foto do Mário no passeio ribeirinho, quando senti um baque na cabeça e perdi os sentidos. Quanto tempo depois - não sei -, encontrava-me no leito do Tejo, rodeada por amuradas, Lisboa em exposição, dourada ao sol, e eu sozinha naquele iate enorme. Chegou entretanto um sujeito alto e muito moreno, diria que angolano, e sentou-se na mesa pequena e convidou-me ao mesmo. Obedeci sem dizer palavra, muda de espanto. Apresentou-se: "Senhor knock", foi o que me pareceu ouvir. Desejava-me uma boa estada, com tudo ao dispor, de alimentação, cuidados de enfermagem, piscina e ginásio, massagem e muito mais. A troco esperava que lhe desse opinião sobre uns quantos assuntos de políticas públicas. "Política", balbuciei a medo!
Sim, iria ouvir uns tantos forsighters e eu seria um deles. Não ousei pedir explicações. Mergulhei o olhar na piscina central que começava a iluminar-se por dentro e estendi-o depois aos pormenores de luxo a que só agora me permitia aceder. Que situação estranha! O senhor Knock, ou lá como se chamava, pediu a refeição para os dois, sem me consultar. Acertou em algo que eu não conhecia, mas que me soube muito bem!
Estávamos estagnados no meio do Tejo. Todo o tipo de embarcações passava por nós sem que eu pudesse pedir socorro: os olhos do senhor Knock estavam cravados em mim. Fiz-lhe frente e também o olhei intensamente: sorriu com uma certa doçura. Os dentes eram brancos demais, ou seria de alguma luz negra misturada na luz ambiente, maioritariamente indireta e proveniente da piscina?! Grande e bela, bem posicionada ao centro do iate, mantinha as águas verde-cristalino a dançar suavemente fazendo o esperado clap e chap, que impregnava o ambiente de frescura e desejos lúbricos - noutro contexto, é claro! O espetáculo que era Lisboa esmorecia em ouro velho interrompido por algum lampejo provisório e convertia-se por fim em ponto-luz. Eu devia estar a sonhar, mas já que não podia fazer nada: ouvia, sentia - enfim, apreciava! Mas estava desconfortável com a presença enigmática do senhor Knock que se transformava num vulto e se dissolvia na noite - só até eu pensar sobre isso, pois de seguida a amurada reforçou a iluminação, mantendo-a indireta, mas suficiente para ver os olhos do senhor Knock. Do lado esquerdo, um brilho azul na íris chamara a atenção e logo escrutinei uma lente com uma espécie de mira televisiva que se esfumou de novo ao movimentar-se o homem. Que seria? Uma câmara? Um gadget? Estaria a ser analisada em tempo real?
Depois da refeição o senhor Knock despediu-se e deixou um molho de folhas presas com um clip, contendo o documento que eu devia analisar e sobre ele opinar! Tive vontade de irromper a rir, mas não estava certa de que fosse um sonho. E mesmo que fosse, seria melhor não abusar da sorte.
A cadeira vazia do senhor Knock foi ocupada pela senhora Aurora, que se disse minha mentora: que lhe pedisse tudo o que precisava. Também ela brilhava azul do olho esquerdo. Seria alguma brincadeira: sofisticação tecnológica inimaginável simultânea a modos e serviços do início do século?!
A noite caiu morna e profunda. Lembrei-me do Barco do Amor. Sorri e logo gritei! Uma barafunda irrompeu por ali fora: uns mergulhavam, outros apertavam copos de cocktail nas mãos; uma algaraviada americana explodia pelos céus! "Antes um bom ambiente de jazz", desejei à-la-carte, e assim aconteceu! Deviam ser hologramas! Chamei a mentora Aurora, só com o desejo, e a cena foi substituída. "Tranquila?", perguntou ela. "Sim, bastante divertida", quase menti eu.
Recolhi-me ao aposento de primeira que me foi reservado. Sentei-me à secretária e li as vinte cinco folhas A4. Escrevinhei apontamentos e fui dormir. Adormeci de imediato, milagrosamente! No dia seguinte reuni-me com o senhor Knock e ele agradeceu. Não era preciso registar nada, nem sequer conversarmos. Bebemos um cocktail! Apesar de tudo ser insólito, estava à espera de ser ouvida. Na verdade tinha ensaiado bastante depois da leitura! Ou eram tempos novos ou um sonho futurista bem esgalhado!
"Adeus Senhora Luísa", disse o homem, enquanto se me enrolava a língua. "Senhora Luísa Bósforo", foi um prazer, completou! "Raio, confundiu-me com uma personagem minha", cogitei.
Adeus Senhor Knock! "Como disse?" - questionou ele! "Adeus senhor", emendei: "knock out"!
Ainda hoje não sei o que aconteceu, se é que...