Alberto
Alberto Bridgetown é um homem com meio século vivido, de têmpora rija e atração magnética, em que o revés de ser tímido rendeu em introspeção e leitura compulsiva.
Na juventude, Alberto aproveitou o clima revolucionário para experimentar identidades políticas e jogos relacionais e daí veio a tendência para uma atitude de observação laboratorial escrupulosa da reação humana, em particular a feminina, às suas subtis influências. Dessa altura data ainda a personagem que representa no Mundo: um caráter nebuloso e difícil de se fazer compreendido. "Sou impossível", diz de si, desviando a semântica do termo para os domínios do capricho.
Alberto Bridgetown, diferenciado, quase aristocrático, um temperamento reduzido "au" vinagre balsâmico, de fino e peculiar humor aplicado às fragilidades alheias. Subtis sugestões e ambiguidades marcam a ferros quem bem entende e reserva "para a vida" outras relações que estima. Por isso, ninguém o conhece a preceito e ele voga sinusóide por entre reflexos de si na mente alheia.
Alberto é já um esboço fantasmático na memória das muitas almas que torturou e para quem simbolicamente morreu. Delas se desfez também sem arrependimento. Mas não se pode afirmar com sinceridade que a sua maldade arguta tenha sido esquecida ou perdoada, nem que ele não se recorde, com um sorriso retorto, de cada uma das suas vítimas - a culpa é da vida acelerada da capital, da dispersão geográfica dos seus contactos, da cuidadosa separação de uns - os que ele respeita -, dos outros, com quem se diverte. Uns e outros não se cruzam e Alberto pode continuar tranquilo, apesar de defunto tantas vezes.
Numa comunidade pequena seria um caráter já assassinado! Na urbe, as suas qualidades intelectuais e a personalidade de aparência regular e sóbria são uma base de suporte. O seu divertimento nunca é revelado. Move-se nas fundações do subsolo como um rato ou uma toupeira.
No futuro, pode bem aparecer subitamente parado no tempo. Os outros na vidinha que lhes coube, fluindo, e ele ali, estanque, abandonado às formas do embate do corpo no chão e do derrame do líquido escarlate do corpo, vazando em enxurrada. Um desenho policiário fecha-lhe o contorno, por sua vez enquadrado por faixas de identificação de crime. Agitação de pernas à sua volta, flashes fotográficos e neurónios a zumbir procuram um sentido racional ao ato. Alberto vai jazer em locais previstos para tal desdita. Ficarão dele esboços fantasmáticos irreconciliáveis se alguém de uns e de outros se referir a Alberto - "Como assim?!" -"Não, não é o Alberto que conheci!"
Mas passado muito tempo, nem uns nem outros poderão partilhar daquela dissonância, eles mesmos absorvidos pela reciclagem da vida!
A história seria diferente se Alberto tivesse deixado a sua obra literária para a posteridade. Também alguma vítima poderia tê-lo recriado em personagem ficcional ou registado num estudo de caso. Mas não! Até hoje, os talentos significativos em torno de Alberto e suas relações, não frutificaram em livros, arte ou qualquer outro registo. Apenas um dos dois filhos lhe segue o gosto literário, mas se Alberto é como um chá forte, o seu rapaz mais viçoso não passa de água chalada.
Assim, presentemente, ainda que sadio e ladino, sente-se em despedida. Aceita-se e repete-se, sem arrependimentos.