Aldeia
A aldeia ficava no vale. As casas, que pareciam ter sido sacudidas para o veio central, dispunham-se encavalitadas como migalhas. Os habitantes trabalhavam para os donos das grandes quintas e algum conterrâneo menos desafortunado. Com o tempo, as terras foram passando de quem as tinha para quem as trabalhava. Às vezes havia até casamento entre a aristocracia rural e os novos burgueses, se assim se lhes pode chamar. Por isso, as gentes foram-se misturando e as histórias de senhores e párias diluiram-se na memória coletiva, especialmente na dos mais novos.
Tal homogeneidade, que deixava de fora apenas alguns marginais, carecia de heróis. Foi assim que a dada altura surgiram acumuladores de terras que as compravam com ganância, aproveitando a sua desvalorização e a imitação de vida urbana que muita gente fazia. Do nada surgiam artistas das mais variadas áreas. A aldeia terciarizava-se à vista de todos com a proliferação de pequenos negócios. As terras voltavam a ser reunidas em poucas famílias. Não seria por acaso que se uniam no casal proprietário um membro da família outrora abastada com um alpinista social recente.
Mas o traçado apertado e irregular das ruas não tinha salvação. Sem passeios, o alcatrão unia-se descarnado à base das casas. Havia habitações incrustadas com habilidade, sobressaindo suas cores lavadas dos amontoados de ruínas com arroz de telhado - se sobrasse teto -, janelas escancaradas com vista para mato, heras retorcidas, e muita pedra sem função. Às vezes conseguia-se passar por uma rua inteira de mostra de cores e estilos sem nenhuma preocupação de coerência. Cada um fazia casa ao seu jeito, quando e como podia e sabia. Não obstante a linha emigrante aparecer aqui e ali, não se comparava em número às casas com parede de azulejo de interiores, após uma balaustrada de ferro decorativo na varanda e umas barras mais vivas a terminar o design exterior.
O progresso penetrava a aldeia à custa da iniciativa individual. O desenvolvimento coletivo vinha com a lei do Estado, períodos eleitorais e a festa da terra, pouco mais! Por isso, os habitantes tinham que se deslocar para serviços básicos e o emprego local era residual.
"Que cenário para o filme!" - gritou o Manuel Migalhas do alto do Barrocal a esborrachar os olhos nos binóculos apontados à aldeia de Todo o Mundo enroscada no aconchego do final de tarde dourado!