Histórias em Sanabria

História um 

"Acelera, ACELERA", grita Rui Salsedas. "Não grites!", pede Mónica a gritar com ele. Treme. O coração dispara. Teme o derrapar dos pneus. Não sabe se deve travar, o que pode acontecer; vislumbra os camiões a avançarem para cima do carro que conduz. Encontra-se num estado deplorável. Procura uma réstia de paz, de lucidez, para manter uma condução segura e ele prossegue gritando, enervado com a condução da mulher. 

Quando puderam parar e trocar de condutor, a mulher estava lívida, o suor entrava-lhe para os olhos, engordurava as lentes; sentia-se miserável, entre vítima e culpada da sua fobia, que irrompera ali, subitamente, ao ver a estrada com um desnível abrupto, o corredor do meio para sentido alternativo, e a lembrança: IP 4 , a estrada da morte!

A morte temida! Matar! Morrer! Com que espírito iniciava as férias em Sanabria, o seu destino. Ficaram numa pensão. Desajeitadamente. Podiam ter escolhido melhor. Era junto ao rio Tera, mas nem se dava por isso. Um quartinho modesto, a droga da televisão que o namorado haveria de ver à exaustão, pela noite dentro, o restaurante embaixo, a espanhola que não queria adaptar-se a portugueses: -"o prato é só de truchas, e as batatas?" -"Dose de batatas?" - "Não, as que fazem parte do prato!". Oh, que desentendimentos! aquela cara fechada da empregada já nada nova, antipática, ou eram assim por ali? Montanheses, mais fechados do que os espanhóis da raia ou de Madrid? Ou seria a amargura da vida, a grande desgraça da cheia assassina, assinalada junto ao rio?! A morte?!

E o homem que a acompanhava começou por se dizer tenso com o trabalho, e acabou a fazer birras intensas, sem se explicar, até fazê-la sentir um silêncio assassino, no meio do lago, onde seria tão fácil dominá-la. Ele que já o fizera com outra, sem ser descoberto, em Monsanto. Ou pelo menos ela assim o conjecturara e logo se arrependera: excesso de imaginação, excesso de medo. Talvez ele fosse apenas um caso psiquiátrico, mas ela?! Ela que namorava com ele, era o quê?! A casa dos barcos ali à frente, a imensa calma do lago, os dois na canoa, um pesado silêncio pai de ideias maléficas, e se?! Mónica quebrou o momento de pausa demoníaco e terrivelmente pacífico, a profundidade do lago, que ali parecia de águas negras, o balançar do barco no pequeno cais da "casa dos barcos", como lhe passou a chamar...ela quebrou o momento mágico com uma verborreia intensa, riu, chamou de toda a energia boa que havia dentro de si, da teatralidade que não era sua, e salvou a pele, ou a face - de si mesma, por aquele arraial de emoções, talvez sem motivo! Não sabia mais segurar-se à balaustrada do real. A queda de si, ou em si, era o que estava em questão! 

Hoje sorri porque se salvou, do momento, do homem, daquela vida triste que tinha e das ilusões que ficcionava. Construiu-se um pouco com o que tinha e com o que deitou fora. Fez-se à vida! Não acertou logo! Haveria de ser um caminho longo e muita vida desperdiçada. Ser filha de um psicopata, tinha o seu preço, sobretudo sendo de uma sensibilidade fóbica - por temperamento ou por influência paterna - é que não sabia dizer. Mónica. Dele, deixou de saber um dia, não antes de regressarem ao lago de Sanabria, naquelas férias em que se preparou para não depender da boleia dele, e foi forte, tão forte e tão pronta, que ele lhe disse que foi das melhores férias que tinha feito na vida e não se meteu com ela, excepto uma pequena coisinha, a contar noutra história. 

A Sanabria voltou Mónica vezes sem conta e foi muito feliz nessa terra.




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