Uma História com um Zé

Rosemere ouvia os seus passos e media a sombra na calçada, que àquela hora era curta, enquanto arfava com o calor. - Boa tarde, Dona Cláudia; - Boa tarde, senhor Aniceto - dava e recebia cumprimentos breves e continuava desarvorada estrada afora. Era indiferente ao que dizia, ao que lhe respondiam, preocupada que estava com o chegar. Engolia a calçada em grandes passadas, movia-se como uma máquina de produção, a rotina de andar, andar para chegar depressa. Nem a poeira da brisa rasteira a anunciar mudança de tempo lhe desviava a atenção. Ela era poeira também, a levantar voo, desarranjada, incomodativa, de partida para nenhures -, que não voltaria a pousar por ali! 

Ao chegar ao quintalinho da sua casa, empurrou a portinhola que pintara há uns dias, agradecendo por na altura não se ter levantado aquele pó que lhe estragaria o trabalho e perturbaria a higiene da casa. Nesse dia, teria odiado a poeira e praguejado, mas hoje, com a terra solta grudada nas pernas a suar, só lhe ocorre abençoar tudo pelo que passa e sente um afago relaxante dentro de si como se a vida decorresse lenta. E devia ser o contrário, pois os minutos precipitavam-se junto às horas, por atrapalhação e ânsia pela partida de Rosemere. Ia levar a sua miúda, tão pequena, tão doce, para longe do destino do lugar e estava com plena consciência de dobrar esse destino e selá-lo com as pegadas da suas sandálias no pó.

A camioneta horária curvava na praça e no destino da mulher, vomitava gente atordoada com a lufada de calor e a baforada de fumo; o conjunto rugia e grunhia como uma leoa a acalentar as crias. E era nessa atitude maternal que a camioneta a abocanhava também a si e à sua miúda. Adeus lugar!

E algures foram ambas depositadas.

Rosemere atravessou um ano e continentes após o acolhimento temporário da tia Germana numa cidadezinha próxima do lugar. Rumou à Europa, onde não conhecia ninguém, solta como papagaio que esticou a corda e se entregou ao vento. Por ninho dela e da sua garota, a casa da idosa para onde iria trabalhar e habitar. E foi logo à chegada que conheceu o Zé. De traços redondos no rosto e na barriga de cerveja e calva barbeada, o homem apressou-se a mostrar o quarto onde elas se instalariam, sob o olhar atento e cansado da sua mãe perscrutando o queixo, a cintura e o nariz da nova criada Rosemere a partir da cadeira de rodas; sorriu também para a menina e com ar de se fazer respeitar deu algumas instruções à garota com intenção educativa. A miúda corou envergonhada, depois riu-se para escapar ao constrangimento. Rosemere prestava uma atenção plena aos movimentos da idosa e do filho, como animal recolhido com cria, tanto na obediência e conformação, quanto na prontidão para o ataque.

O tempo correu acelerado. A idosa faleceu, a  filha cresceu e Rosemere trabalhava agora como criada de fora noutra casa. Mantinham-se ainda a viver com o Zé. Para a mulher o tempo corria lento, mas para a menina, o clamor e vibração da vida, faziam-na saltar etapas e era já mulher, de corpo e de vontades, mas não em maturidade.

O Zé era, e não era, o amor de Rosemere - tinha dias! Importante era mostrar-se-lhe uma criatura amorosa, tolerante e de humor estável. Já com a filha, Rosemere esgotava a paciência com as suas labutas de adolescente desconcertante, que a mãe levava a terapias, dava comprimidos de receita - e tudo fazia para estabilizar e controlar, ao menos um pouco, aquele cavalo selvagem que tinha sobrevivido à menina doce que trouxera do lugar. Continha nela as raivas do mundo, até as da mãe: o estrupo, a violência doméstica... Mas à menina, muito menos tinha acontecido, tirando aquele professor abusivo e ter assistido  às agressões do pai à mãe... Não tinha comparação! -   Rosemere não queria dar o braço a torcer! A menina não tinha que exorcizar as feridas da mãe! Era ela, Rosemere, que tinha as cicatrizes, o braço deslocado, os flashes de memória, e tinha sobrevivido e ultrapassado tudo. A garota tinha o quê?!  Talvez quando o Zé a tocou, mas logo se mostrou arrependido e pediu perdão. As partilhas avançavam, a casa da idosa era vendida e, Rosemere, de sentido de sobrevivência aguçado pela necessidade, logo ali percebeu que era com este homem que tinha de ficar, apesar de ele não querer uma nova família, mas apenas namorar. - Ora, - diz apequenando os olhos -, os cartuxos estão do meu lado, o Zé está arrependido, eu governo a sua culpa! A miúda há de resolver isto - o assunto não teve nenhuma importância e já acabou. Atarefada com a mudança, curvando de novo o destino, Rosemere, sobe para o carro do Zé; lá atrás a garota com a atenção enfiada no telemóvel. Assim, acomodada no banco da frente, junto ao Zé, Rosemere sente as forças a recobrarem, em preparo para os esticões da corda de papagaio que hão de vir. A vida prossegue numa certa normalidade. Assentou a poeira!

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