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A mostrar mensagens de abril, 2022

Ai que dor! O Duarte

Podia ser o título de uma série. Um psicólogo escolar guarda memórias arrepiantes dos alunos que conheceu! Deviam ser contadas, desmontando e recombinando, ficando anónimas e perdidas no tempo... O Duarte, nome inventado agora, tinha apenas 15 anos. Ficava alterado nas aulas, em turbilhão emocional; às vezes fugia da escola, saltando a vedação e fazia longos quilómetros a caminhar. Uma vez contorcia-se de dores no peito e chorava. Muitas vezes chorava, mas daquela agarrava-se a si mesmo, na zona do coração, tremia e dava ais. Ficou na maca um tempo, em sala própria, e a psicóloga com ele, fê-lo falar e tentou o relaxamento. O rapaz contou-lhe os flashes que tinha da sua cadela a ser morta à facada pelo padrasto, que era talhante. Imaginam?! Tomava o cocktail de medicamentos psiquiátricos, tinha a CPCJ, vinha de outra escola, não aguentava estar dentro de uma sala de aula. Mal sabia ler! A mãe, mulher de aspeto muito estragado, vinha sempre que solicitada. Parecia ter debilidade intelec...

Pela Avenida das Forças Armadas

Hoje penso por aqui na Avenida das Forças Armadas. Alguma saudade, talvez do vigor de subir energicamente este local por onde tanto passei, convivi - enfim, vivi! Não tenho grande memória para detalhes, surgem-me flashes. Muitos. Desde o café A Pátria, com a sua jukebox, o restaurante chinês mais abaixo - quantas vezes o frequentei?! Por quase todas as mesas passei! - até à geladaria - onde fui poucas vezes, creio que não esteve lá muito tempo. Cá em baixo, a Feira Popular, frequentada desde a meninice e depois por várias fases na vida, incluindo o almocinho de frango, ouvir os pregões atrativos dos empregados dos restaurantes e ainda dar uma voltinha pela bruxa, o comboio-fantasma, o poço da morte, ver as rodas e jurar não as experimentar, encontrar alunos do centro de formação, lembrar a birra do irmão quando era pequenino - uma vida, ali! Cá fora, na esquina - será com a 5 de Outubro?- onde eu ia ao telefone preto, com o contador de períodos, acertar encontros, ou afinar vendas - si...

Nádia

A Nádia era um junquinho, dobrava-se facilmente à menor brisa, e, no entanto, não quebrava! As desavenças com a mãe já tinham barbas, acusavam-se mutuamente na esquadra da polícia - era um estilo de vida. Interpelada, a mãe repetia acusações ao ex-marido, que agora vivia bem: casara de novo e tivera filhos. Outros filhos. De vez em quando vinha buscar as duas que tinha com ela, que tudo fazia para lhes dificultar a ida. E, realmente, a Nádia detestava o pai, por nada mais do que por ter "deixado" a mãe. A mais nova não vestia camisolas ou tomava partido e assim lá andava feliz. Já a Nádia parecia o tal junquinho, frágil, fácil de dobrar, teimosa - vestia a pele da mãe despeitada. A mulher trajava de negro como uma viúva, sem estilo, apenas se encobria, se dissimulava a inveja, o despeito ou o desejo. Era a perfeita vítima e aí estava a prova: a filha infeliz e difícil. Para seu horror, a Nádia também a detestava a ela. Mas um dia mãe e filha fizeram as pazes. Passeavam, tinha...

O ovo de Clarisse

Voltei à Clarisse. Tinha-a deixado para trás enrolada em angústias: eu e ela. Desde que a vi num vídeo que me começou a ler os seus contos, com a voz arrastada, sopinha de massa, ar de mimo e aquele jeito de desenhar olhos, exótico, e a boca a derramar realidade, como sangue numa ferida recente. Tudo nela encanta e dói!  Então ela me tem contado os seus contos antes de eu adormecer. Hoje dei-lhe uma hora do dia. Ele já vai alto, os pássaros devem ter cantado, os ramos adormeceram ao sol, sem bulício e eu, ouvi apenas a Clarisse contar-me O Ovo e a Galinha. Por vezes, pedi em súplica: "pare aí garota, me deixe pensar" - e usava o tempo para me sentir metafísica - e eu nem sei o que isso seja -, mas era um imperativo de transcendência que me acometia. Clarisse não comentava. Retomava, tranquila, a sua leitura, ou o seu contar do ovo, quando eu me dispunha a ouvi-la! Vi Moisés, de Frida Khalo! Ouvi uma filosofia meio-espírita, que talvez conste em algum evangelho não corrompido ...

O Miguel e a Dislexia

O moço tinha um sorriso cativante, olhos como faróis azuis em moldura loira. Bonito e confiante como um vendedor de casas. Chamara-o por motivo inespecífico: "havia de ter qualquer coisa, pois não aprendia". Conversámos animadamente e pedi para ler. O Miguel tentou-o, a chorar. Foi um choque! A tia era quem o criava e contou o problema no nascimento e que uma psicóloga já dissera que tinha dislexia.  Não sei se era da linha cognitiva-comportamental prevalente, mas no meu curso desvalorizavam-se estes "diagnósticos" e acrescentava-se com ironia: "agora todos têm dislexia"! Atirei-me aos livros. Foi muito árduo explicar aos professores as necessidades do aluno; eles protestavam que aquele aluno não podia estar naquela escola. Estávamos no início dos anos noventa. Cheguei a ter comigo um membro do Conselho Executivo e lá se fizeram adaptações. Dali em diante, fiz uma jura: "iria ser expert em dislexia" e assim tentei, fazendo várias formações e apre...