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A mostrar mensagens de março, 2022

O Enxoval

Quando quero referir-me a um rol de coisas, geralmente inútil, designo-o por enxoval. Quando era pequena, havia essa estranha coisa do enxoval! Via as mães pôr numa arca: naperons, lençóis, e outros panos. Ofereciam às garotas, desde pequenas, tecidos bordados, aprimorados, úteis, para um futuro em que seriam mulheres casadas. Eu quase não tinha nada. Mal me apercebi da congeminaçao para nos formatar, resmunguei e deliberei que não queria enxoval. Tomei-o por violência contra a autodeterminação do meu futuro, mas não pude impedir todas as ofertas. E assim, um paninho de tabuleiro da avó amorosa, ainda vive na minha casa - vi-a comprá-lo e não percebi ao que se referia; foi a primeira oferenda. Mais tarde, tive que perdoar a avó por não vislumbrar a minha emancipação. Às vezes, as mães abriam as suas próprias malas de enxoval, onde residiam lençóis, atoalhados e rendas inúteis, que pareciam guardar o futuro passado. Sonhos. Não os "metiam a uso", por pena, diziam, mas era mais...

Sem título - porque me esqueci!

Uns anos depois já não te vejo nos sonhos, nem viajo contigo no tempo. Lembras-te de nós em Alexandria? Em Paris? Em Lisboa, no final do século XIX, ou no Aglomerado de Núncio, na Era da Espiral?  Nem sombra já fazes; não me ocupas espaço, ouves, lês, tocas, influencias; não jogas comigo, trauteias ideias, estimulas oxitocina, nem eu a ti. Não, não sei se ainda respiras... Nem se eu estou realmente viva... Que não és um nada, também é verdade! Serás um rasto de um esquecimento em avançado estado de decomposição. Nem um bafo se sente! Nenhuma emoção! Nem a ausência é presente. Que estado fátuo te atingiu: uma não-existência; uma voz extinta, difícil de acreditar que viveu. Não tinhas perfume?! Não rias?! Ou rias?! Era quente a tua voz?! Ou fria?! Falavas ou apenas te repetias para a tua audiência interior e me deixavas assistir, bater palmas efusivas e adorar-te?! A tua história era tua, ou uma história contada para pareceres ser o que não foste, és, ou serás? Os teus amigos são-no ...

Memórias

Hoje chove a cântaros. Lembro o som da água a cantar nos gargalos, a sair ou a entrar nos cântaros de barro que guardavam água fresca no loiceiro da aldeia, abaulado para se poderem virar os pesados e bojudos recipientes, facilitando a saída da água para os copos de talha bastante formatada. A água sabia a hortelã. Talvez não a hortelã, mas a algo verde e fresco. Sabia a quê? À infância. Íamos buscá-la à fonte, a alguma distância e com esforço. A água. A infância. Combinávamos a composição do grupo e a hora. Metíamo-nos pelo atalho que passava pela bagaceira. O cheiro forte, o monte de entulho negro à porta. Quem lá estaria dentro e o que faria? Era para mim como uma central nuclear, com especialistas obscuros dentro, em equipamentos incompreensíveis, suor e labor alienados; ainda por cima, homens: estranhos seres de que conhecia poucos exemplares e mal. Mas o caminho era trilhado a bom ritmo, sem tempo para apreciação de paisagens. Apenas me refiro a elas porque se me instalaram na me...

Um sonho prévio à guerra

Só para recordar, registo o que lembro. Na primeira parte, quase nada recordo, senão estar a conduzir por estradas confusas e a negociar caminhos com alguém. O que importa é que, ao recordar, me vieram à memória pedaços de outros sonhos, em viagens e lugares pormenorizados. Adiante, o que me incomodou foi a segunda parte do sonho! Chegámos à casa da Cris, que é no Douro: uma casa grande, porém sem a glória que eu imaginava. Passei de carro por ela e fiquei nos momentos seguintes, a recordá-la, mesmo dentro do sonho. Tinha uma pintura arenosa e irregular de um amarelo pálido, um telhado de telha canudo, rósea, um logradouro, e mantinha uma janela aberta, onde por entre as cortinas a esvoaçar, se escancaravam uma dúzia de fotos do filho de Cris, com deficiência, sorrindo. A cortina estava arredada para que bem se visse o melhor da casa: o filho! Sei que a casa tem piscina, mas depois de chegarmos, acoitámo-nos no primeiro piso, amedrontados, e que não foi possível sair, pois a ação que s...

A Catequese

Ia à catequese, porque sim. Iamos todos. A Cila foi a minha primeira catequista. Era adolescente. Ensinava orações. Quando decorei o Pai Nosso, embora andasse embrulhada com o conteúdo, ganhei um santinho. Fiquei orgulhosa e o meu sentir valorizou o santinho. Comecei a ver-lhe cores bonitas. Cores que raramente via, de pintura religiosa renascentista, provavelmente. Uns castanhos avermelhados, penso recordar. Uma grande nitidez. Um homem de outros tempos, com outros trajes. O rebordo era recortado, o que também era importante. Era uma estampa retangular que mostrei em casa e perguntei o que fazer com ela. Punha no livro de missa. Deveria ter um, mas não me lembro. Já do véu, sim. Era beije, de tule bordado, com rebordos reforçados e ligeiramente curvos. Era novidade estar com a cabeça num véu. Não sabia o que sentir. Mas diziam que tinha de ser, recordando uma série de castigos e penalizações divinas, mas exercidas na terra - isso e se mastigasse a óstia. Esta, mal a provei, duas ou tr...

O Seu Lado Solar

A brisa flui, doce, pontualmente urgida por pequenas rajadas que logo esmorecem no traquitar dos ramos da vegetação farta, mas tranquila, quase de jardim, lá fora. A casa volta a ficar iluminada pela luz indireta do pequeno morro cor de terra em frente à janela e das poucas nuvens de passagem lenta, mas determinada, ...e tudo lhe reenvia a luz daquele sol nostálgico que antecipa a primavera. Os amarelos e vermelhos pálidos-aguados da luminosidade encaixam perfeitamente na memória da casa do amigo. Estava a vê-lo de nariz empinado na direção do sol, a dizer-se feliz por estar ali de nariz empinado para o sol - tão só isso! Era feliz! Ela fixava-lhe o perfil, e sem querer apreciava o seu estômago dilatado, em bola - também este lhe parecia em regozijo e empinado. Nada afetava o amigo! Endurecera na política desde a faculdade e há menos de uma dezena de anos que a abandonara, de pútrida, a definhar... "Quanto contribuira para esse mau desfecho?", era conversa que não sabia fazer...