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A mostrar mensagens de março, 2021

Mentes Criminosas em Sintra

Gorgi pendula a perna, impaciente. A sua vida atual, em modo simplex, consiste em cuidar da filha púbere e apoiar a mais crescida, embora já autónoma. Fica hiperconsciente do tempo a passar. E não está a alcançar metas; nada bule! Preocupa-se! Já sentiu uma atípica calma, que no início estranhou, mas depois saboreou, até o tédio chegar. Finalmente, espreitou o site de encontros e decidiu agir.  Dr. Sueli embrenha-se em leituras simultâneas de géneros variados- deixa-se encantar. Relê os livros da sua biblioteca e ainda passa pelo alfarrabista; trabalha em semanas alternadas no laboratório de análises clínicas e está a ficar ansioso por "something we call love".  Brincou aqui e ali nas redes sociais, mas enjoou! Até que surgiu Ela.  Com os olhos amendoados, como o seduz! Na verdade, é muito parecida, na foto de perfil, com uma ex. namorada. Sente uma saudade viciada. Pensa telefonar à Ana, mas resiste: não quer explicar-se. Hoje é passado! E nesse passado investiu em Gorgi...

Gorgi Lotte

Gorgi Lotte é conhecida pelo sorriso amplo que lhe vaza dos lábios para o amendoado dos olhos, instalados no inchaço indígeno das pálpebras, e se espraia como um polvo centrífugo pelos cabelos negros, levando-os a alçar madeixas extáticas; os braços sorriem nos gestos redondos e maternos, as pernas cheias participam com repuxões, fazendo-a saltitar. Por fim, os brincos pendulares estremecem e libertam uma vibração erótica para o ambiente - às vezes perfurando a aura de alguma vítima, que logo procura ávida - nariz no ar - a fonte de um perfume infamiliar. Ao sorrir, parece estelar, a baixinha Gorgi, que de quando em vez cresce para o lado de fora do osso e logo rumina em cima da balança uma dieta fatal e o aperto espartilhar de marca Sbelty. Por essas alturas salta à corda, quando nenhuma cria está por perto. A brincadeira já lhe rendeu trilhos de estrias por muitas zonas curvas do corpo, a acrescentar aos remendos das cirurgias da maternidade. Nada que lhe diminua a sensualidade amest...

Big Eyes - Comentário

A mensagem do filme Big Eyes de Tim Burton - sobre uma história real - não é apenas sobre uma mulher talentosa vítima de um homem sem escrúpulos, que abusando da relação de casal e dos preconceitos machistas da época, se faz passar por autor das obras de arte da sua mulher, com o respetivo assentimento chantageado!.. É esse "o dedo que aponta para a lua", mas a lua é outra! A lua é a nossa sociedade, somos nós, a nossa aceitação de que seja "normal", como dizia Arno Gruen, "a loucura". A lua é a nossa ânsia de viver numa ficção com heróis, previsíveis, com as suas jornadas e reconhecimento climático final. Naquele tempo, o artista "normal" era homem (ainda é, maioritariamente?! ), cosmopolita, reconhecido pela elite! Com o advento do consumismo acrescentou-se o marketing, os vícios dos media, a extroversão exigida, o contar de histórias, sem descurar a (bastante anterior) importância do desvio, da extravagância, do choque e do imprevisto, como o ...

As Duas Cantoras

Matu pediu para ser recebida. Queria um mediador para informar a escola da sua situação. E a conversa fluiu com Matu acelerando para uma inundação por enxurrada...a mãe estava divorciada e não podia trabalhar porque tinha fibromialgia; ela, Matu, padecia de depressão grave há muitos anos. Para além de se queixar do antidepressivo antiquado, que a punha desmesurada e com ritmos de réptil ao sol, informou que não conseguia frequentemente sair de casa, dramatizando assim: deslocou penosamente a mão até perto do rosto do mediador como a "tocar o vidro da janela do quarto, a querer ocupar o meu lugar na vida lá fora, mas sem que a doença o permita".  Matu, já não era criança. A sua idade rondaria os 17 ou 18 anos. Pedia compreensão para a sua situação, pois iria faltar muito às aulas do curso profissional. E faltou. Quando vinha, agendava uma conversinha com o mediador. Parecia gostar de lhe contar os seus lúgubres dias: tinham, mãe e filha, que encomendar tudo online e receber em...

Quadro Obscuro

É agora a destruição massiva de mundos. onírico, o corpo rodopia no poço, em queda livre. tropeça por vezes em entulho ou algas tentaculares e repulsivas. se as garras seguem a seta do olhar até ao círculo de luz, logo o friso cede ao peso, à gravidade determinista. não há escapatória para a alma e o corpo descai, condenado. Sade. Sade. Mãe abortiva. totipotente, fatal! nenhum ganho lhe é equiparável em necessidade! arranhões e arrepelos. narinas em sangue vivo. o chicotear das duras estacas pelos flancos, os espinhos a rasgar a pele. perdidos no tempo, silvos lúgubres debalde. a roldana do karma sem fim!  memória de todos os infantes talhados para a morte, sacrificados em frente às mães, os seus guinchos dilacerantes...os bodes de expiação, o seu tenebroso sentimento de injustiça no espectro da matança irrevogável. a predação. o abandono do grupo de pertença, a mãe impotente. o pai que cede ao costume! o incenso, o cântico, o fogo sagrado, a hipocrisia partilhada! nos divãs contor...

Anatomia de um Doutor

É de direita. É a sua marca. Pouco hábil no autoconhecimento, justifica-se com a oposição à mãe, que era "camarada"...Das suas memórias de menino, ressoam os gritos festivos e agressivos dos corredores de gente desbragada, entrecortados pelo perfil geométrico dos prédios das avenidas novas contra céus quase sempre caprichados por nuvens! Fantoche atónito, entre pernas e sapatos, sentia o braço repuxado pela mãe distraída com os comandos dos organizadores, as palavras de ordem. Era assim que se recordava de andar atrelado, nas manifestações do pós-vinte cinco de abril. Mãe. Mãe. Que mistério aquela mãe tão cheia de energia apesar da vida confinada a cuidar do filho com deficiência profunda a precisar de tudo. Mãe coragem! Mãe que já sobrava tão pouco para ele, a não ser em promessas do recheio da farta biblioteca. Ele. Ele. Como se desenvolveu assim? Narcisista?! A inveja do irmão, inerte, inumano, os gritos dilacerantes, o cansaço de todos, o afastamento da família, dos tios,...

Conformação

A carreira na marinha, o casamento, a paternidade. Comprara casa. Vários carros para a família. Às vezes visitava os pais na Guarda. Estava tudo certo! A mulher começara a ensaiar um coro de garotos na autarquia. Por brincadeira inscreviam-se nos festivais nacionais, depois nos europeus, com originais. Começaram a ganhar. Ela não era profissional de música: os poemas eram deploráveis, mas ficava bem no papel e tornava-se famosa na região. Lembrara-se de fazer aquilo e agora estava num crescendo de fama e reconhecimento. A autarquia rejubilava.  Ela era convidada como anfitriã em eventos da Câmara... Os filhos participavam...  O marinheiro aparecia de vez em quando no meio do público. Esboçava o seu sorriso enigmático entre o embevecido e o envergonhado....receava mostrar, a quem o visse, as dúvidas que o assaltavam...mas pelos filhos só sabia sentir orgulho.  A mulher, de tão entusiasmada, inscreveu-se na sociedade de autores e abriu um canal de marketing no FB, bem mistu...

Mulheres Malmequer

Caminhava cambaleante, estrada afora, arrastando-se perigosamente rente à sombra esguia do seu corpo no muro da casa de repouso dos inválidos, assaltado por lembranças em flashes dos últimos anos de vida.. mas sobretudo "dela" e também de um coro de fêmeas de importância menor na sua vida. Concorriam com a figura familiar, de sorriso nutritivo, da ex-mulher, mãe de sua filha e dele próprio, de certa maneira... Intercalava estes pensamentos com os planos de sedução para o encontro ao qual se afoitava. Nunca a viu, mas falou possessivamente com ela, durante toda a semana anterior, ao telefone, após o encontro no site - fixava-se na sua voz, quente e doce. Precisava urgentemente de um paliativo de amor... de um cordão umbilical.... Regressara há umas semanas do Brasil. Não conseguia ainda enquadrar o que lhe acontecera, num discurso lógico. Exercitara-se com as pretendentes no site, mas cansara-se de estar sempre a repetir o mesmo. O que pensariam dele?! Que era um frouxo?! Um i...