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A mostrar mensagens de outubro, 2021

O Desenvolvimento de Porto Mastim

Um enclave nas falésias, bem apertado, estreita três ruas perpendiculares à margem do rio e afaga entre cada fileira de casas e a rocha, uma espécie de pombais humanos, feitos de contraplacado, lata, ferro e esferovite, a que o tempo acrescentou algumas paredes de tijolo e persianas nas janelas. As casas de baixo misturam gerações e níveis de vida. Umas repetem a traça, são pequeninas, de primeiro andar, outras de rés-do-chão e quintal, às vezes com cobertura de onde oscila, ao ritmo do vento, a quinquilharia comprada na feira; noutros logradouros, o higiénico cimento dá o mote da desolação a tanques de lavar roupa ancestrais de utilização duvidosa, ou, pelo contrário, exibe-se um investimento no grelhador e nas cadeiras à espera do sol ou da refeição, congeminadas com a mesa e a toalha de plástico. Ocasionalmente, por algumas frestas das janelas, a música popular espreita descarada e estridente, mas o povo é, habitualmente, recatado. Uma ou outra casa mais alta, com especificidade art...

Bruxas e feiticeiras andam por aí entre homens e mulheres

Tu podes, meu amor, ter a pálpebra descaída. Podes ser só inteligente e agradável que já és o máximo, mas eu, meu amor, desgasto-me com todos os ângulos para que sejam prefeitos, ou quase, às vezes um doloroso quase, afastado, e sofro, e tu achas justo que eu sofra e pensa-lo a olhar entre mim e o vazio no centro da minha testa, com uma das pálpebras dos teus olhos a descair. E se viras a cara para o mar, ou porque passam umas pernas giras, vejo o perfil da tua cabeça descontínuo, da calva ao cabelo sobrevivente a criar uma bola de massa abolachada para trás e eu devo olhar para outro lado ou apreciar-te colado com o olho vesgo às pernas da jovem. E tens um rebordo curvo na barriga que te enche de alegria - até parece! Perdoas-te enquanto te faltar a vontade da dieta e do ginásio; já eu, serei olhada com desdém se me apresentar nesses propósitos. E eu sou a bruxa má se me queixar, a vitimizada, até as tuas amigas, a tua mãe, as mulheres da tua referência vão concordar, porque elas são ...

A Desconfiança

Ele chegava aliviado do trabalho, já a respirar fundo, após ouvir o chilrear dos passarinhos e ver as abelhas a laborar entretidas nos canteiros, parou junto à árvore da janela, inspirou fundo, pensou "hoje a empregada não veio?", porque a janela do seu quarto estava fechada, fez uma festa à gata da rua que por ali poisa, meteu a chave à porta do prédio, depois à da caixa do correio, tirou um envelope volumoso e umas cartas com faturas, pô-las debaixo do braço e abriu a porta de casa lançando-se quarto adentro e espojou-se na cama violentamente, sorrindo aliviado. As cartas espalharam-se por ali. Ficou a olhar para o candeeiro e a respirar fundo e depois reparou melhor no envelope maior e rasgou-o: apareceram fotografias da namorada em esplanadas, à porta de prédios, à entrada de carros, numa praia, e aos beijos... Deu-lhe um baque no coração e temeu pela sua saúde coronária frágil. Depois retomou o desfiar de fotos! Parecia de um filme de detetives privados! Não era verdade....

A Esperta Expert

Ela era jovial, brasileira, longos cabelos negros com extensões, olhos mel, formato indígena de face e corpo normal, um pouco baixa, mas grácil. Tinha agenda! Ele era um pouco mais velho que ela, uns sete anos, casado, criador de uma empresa que ia de vento em poupa, internacionalizando-se. Ela engravidou. Ele não queria que vingasse, mas ela fez um plano. Ele era muito jovem, uns vinte e poucos anos, e foi fácil de seduzir. Um mês depois ela informou-o de que engravidara. Mostrou a maior vontade de constituir família com ele e envolveu-o num projeto de vida em comum. Tinha uma filha já de 8 anos!, disse-lhe.  Prepararam a apresentação aos pais, até porque o rapaz vivia com eles e era nessa grande casa que se iriam ajeitar: bem localizada, uma grande vivenda com mata e piscina; tinha-se iniciado na empresa do pai, após o curso de gestão. Estava combinado! A mulher marcou encontro com o homem mais velho e pôs as suas condições. Após protestos e negociações, estabeleceram um acordo! ...

Os Novos Enamoramentos

Incapazes de ser humildes, homens e mulheres não se amam mais, o mais das vezes. Podem colaborar e partilhar economias e logística, mas cada um tem a sua coqueluche animal para afetos profundos - ou partilham a mesma.  Os animais oferecem a sua boa disposição, aceitação incondicional, obediência - vá lá um capricho ou outro -, tocam a nossa pele sem pudor, e deixam-se acariciar, não têm problemas para pensar, ou resolver, não sofrem de dores de cabeça, não amuam.... Mostram amor em cem por cento do tempo. E não cobram. Se se fizesse o mesmo a um humano, ele ficaria com ideias de extensão das responsabilidades, a tentar mudar alguma coisa no outro, a pretender controlar o seu comportamento. Com o animal, não é só uma relação assimétrica favorável ao humano! Na verdade, é a relação ideal para um humano: assim ele domina, controla, e o afeto é puro, só ele mesmo, sem agenda. Há quem prefira formas humanas, talvez uma boneca japonesa em tamanho real, mas falta-lhe tudo o que é pele e e...

Um Conto Misterioso

O marido prometeu-lhe uma viagem surpresa. Enquanto se dirigia para casa, sorria por todas as frestas do corpo e a mente começou a fazer prólogos preparativos e a criar cenários em horizontes românticos. A mulher expandia a sua satisfação através da pele que esticava e melhorava a cor com um carmim de saúde, os olhos brilhavam à vez na sombra das pestanas alongadas, o cabelo adquiria um viço de juventude e os aromas de terra e citrinos surgiam em sequência pelo caminho, onde viu canteiros de flores que nunca tinha observado antes - no percurso habitual para casa. Uma canção compunha-se-lhe no ouvido, e flashes do casamento, do nascimento dos filhos, desfolhavam-se à sua frente. (...) Não se lembrava bem! Como dizer? Queria...como ... - Dulce! Dulce! Querida, estás a ouvir? - Eu...estou confusa! Conheço-te? Quem és? Ele chorou e logo virou o rosto. Mas não foi a tempo, ela vira e chorou também, uma lágrima soltou-se, uma ligeira aflição, e de novo só o presente, as palavras soltas, tudo...

O EnCanto

Quando ele canta, desfia a música em enredos de harmonia; a voz ocupa espaços táteis, por explorar! Fala do mel e de aromas quentes, betacarotenos e notas amadeiradas sul-americanas. O  crispy   finaliza-lhe a composição: a textura da nata que se derrete pela língua ávida afora.  [...Ai a vida cheia de químicos de neurotransmissão e o cantor a explorá-los num trilho sagrado, com desvelo...]  Quase inerte, pausa o canto numa aguarela de águas verdes cristalinas - praias paradisíacas das Maldivas -, e logo abusa da serpentina viscosa da voz; do borboleteio das tónicas; do suspense fatal dos sussurros.. Insolente, vira as costas, quando iria irromper o espasmo do encanto que provoca.  «Canta para mim as flores e as cascatas do Taiti, as suas águas lisas e opalinas, etéreo e vestalino ser!» Acordo do transe: batuca o coração descompassado já em primeiro plano; a voz dele forra de seda e veludo o cenário, enchendo totais sem borda. Agora oiço-lhe um bis repetitivo se...

A Senhora do Ministério

O grupo era já antigo, com mais ou menos um ou outro e juntava-se para passeatas animadas que corriam muito bem. Daquela vez, porque estavam em férias e eram quase todos da Educação, resolveram ir à feira medieval, onde combinariam a semana no Algarve. Iam só umas tantas meninas. A senhora do ministério iniciou o percurso da feira dentro da barraca de uma cartomante, deixando o resto do grupo à espera. Todas animadas, e bem vividas, aguardaram alegremente. A senhora do ministério foi a todas as outras ofertas de adivinhação e não se sabe qual delas a avisou que algo não iria correr bem na próxima viagem ou passeio. Claro que era estranho começar assim a planear uma viagem, mas todas, de bom humor, não ligaram à premonição.  Chegado o dia, uma delas avisou que só poderia ir no dia seguinte. Partiram então sem ela, sem problema algum! A senhora dos mistérios conjecturou que talvez, fosse àquilo, que a senhora das cartas se referira. A menina que chegou um dia depois, fez tão boa viag...

Uma tarde de outono

O outono trouxe dias indecisos, mas hoje o céu azulou. Estive a compor o meu último livro e, inevitavelmente, reentraste na minha vida como um fantasma. Vejo-te a ires de Alvalade a Algés. Um Algés álgico com muitas memórias para ti e para mim. Nenhumas nossas! Mas vejo-te no teu carro, a partir do teu próprio olhar, do teu pensamento, de alguma moleza e apaziguamento enquanto deslizas a velocidade baixa pela marginal. A torre de vigia inclinada sobre o Tejo atrai o teu olhar, é quase um vulto - e pensas que has de vir com ela ao Siesta ali perto. O sol a derramar-se em laranjas e dourados e tu em paz, seguro agora de que ela te quer, tanto que te está quase a convencer a casar. Logo tu, que te sabe tão bem a solidão, daquela voluntária, que é só carregar no botão, ou no ecrã do telemóvel e marcar um encontro, e o sexo decorre! Estás feliz, agora, sem te preocupares em mudar a situação. Talvez lhe digas que sim, já que tanto insiste.  Lembro bem de como é conduzir pela marginal ao ...