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A mostrar mensagens de dezembro, 2021

Uma ligação estranha a um lugar

É um local muito apreciado! Os turistas costumam querer fazer-se fotografar ali, com o canal por cenário e os coloridos barcos de matriz fenícia. Também ela já tivera que posar algures por lá, sempre constrangida, por um não-sabe-porquê e pelo contraste com a satisfação dos seus companheiros, em cada viagem - umas três; por aí. E iam aos doces típicos da região cheios de gemas - que até isso ela detestava na altura, agora não tanto. Foi mudando com o tempo, mas esta repulsa pela cidade que todos adoram é visceral e mística.  Logo na primeira vez, num grupo de família alargada do marido - hoje e desde há muito, ex-marido -, passeavam num qualquer jardim, mas a ela só lhe dava vontade de fugir:" vamos embora, vá lá, não gosto disto!" Nem se lembra se o chegou a dizer, talvez sim, pois nessa altura era muito de boca no coração, e então julga lembrar-se do comentário e do olhar esbugalhado: "como é possível não gostares disto?!" E lá aguentou, contariada, e nunca mais s...

Deixem -me

Nem que eu crie um deus menor  para poder dizer deus me livre  de ser um projeto  de ter um projeto  de criar um  de participar nele  deus me proteja  dessa gente  dos projetos! dos colaboradores  dos inovadores  da inclusão  dos amigues...  Deusinho  estou fora  das promissoras ideologias  do início do século passado promíscuas com as novas tecnologias  e a globalização deixem-me em paz! deixem-me pensar! deixem-me ser, sendo, como sou de qualquer jeito incalculado onde paire a pele da dúvida e haja um local amplo  como despensa  para surpresas e defeitos  encantos e sombras  deixem-me estar  vendam-se para aí construam torres de Babel  prefiro a honra do cigano! a borda de fora!  ser observador sobrevivente  e escolher  não estar. 

Coisas da Vida

Esta mulher acha que sabe da minha vida! Escreve sobre mim: passei de mentor a musa! Acerta pontualmente - como no pontilhismo Seurat consegue mostrar a paisagem com falhas aqui e acolá. Hoje, por exemplo, depois das compras de última hora para a noite de Natal, telefonemas e combinações, estamos no final do almoço, com as garotas dela em algazarra a falarem por telefone com metade do mundo dos dois hemisférios e dos vários pontos cardeais. Ela passa por mim e acerta-me com um beijinho casto quando voa de sala em sala, de quarto em quarto, em particular frequência para a cozinha. Percebo a ideia, também conto ajudar, mas por agora estou a passear pelas redes sociais e a ver as mensagens natalícias dos amigos e, apercebo-me que a Maria me está a provocar - não se limita a imaginar a minha vida, como se põe a remexer no meu passado e faz questão de mostrá-lo, assumindo que eu vejo a sua página. Bem, é Natal, não vou implicar, até porque o faria apenas comigo mesmo. A minha atual é ciumen...

Desejos de Lagosta

O meu velho ouvia falar de lagosta como de um manjar mítico - eu era de caviar. Para ele, óculos de sol e música clássica faziam parte do mesmo exibicionismo de classe e ele lembrava dia de cães a perseguir os colegas grevistas afoitos, e eu e ele lembrávamos do Marcelo Caetano a falar de certos pescadores de águas turvas e de uns senhores encasacados que diziam muito bem e batiam palmas na televisão, em sincronia, presumo que em tempos fixos. E havia a Lagosta que era tão mítica que o meu velho, que se recusou sempre a ouvir música clássica e a usar óculos de sol e também não teve cão, guardou-se o desejo de Lagosta como último reduto do palácio dos desejos. Andou de avião, fez as viagens  que desejou ou lhe impingiram e gostou de todas. Comprou o forninho saloio de pão, plantou as árvores para a industria alimentar, e as exóticas, dobrou-as ao clima e, às vezes, venceu. Pôs os filhos na universidade, antes podia dizer que eram bons alunos! Enfim, realizou-se dentro do possível, m...

Inutilidade

Penso que sou preguiçosa na escrita. Revejo pouco. Quase nada corto. Quando vejo o que outros escrevem... Bem!, fico perplexa se hei de melhorar ou desistir. Mas tem um lado que posso chamar de existir, ficar mais rica, uma esperança de ser lida, que me mantém a dedilhar como uma tola! Não vale a pena, claro, como tudo o que fiz na vida, foi apenas um processo de oxidação, uma energia transformada segundo a lei de Lavoisier, um pontinho visível num caos desnecessário. Tanto fazia ter existido ou não. Nada, absolutamente nada nem ninguém ficou tocado com esta existência: inútil! Mas difícil de gerir, para mim! Uma ovelha. Mansa. Encurralada. Às vezes a tentar outro caminho, mas logo revirando para não ser esmagada. Como será o fim que se avizinha?! Torturante?! Mais do que a minha própria vida?! Palavrinhas boas - ouvi-as, mentirosas! Nos momentos-chave, só os meus ecos! Apenas um gato! Um gato, me amou! E vá lá, um gato, amou-me maravilhosamente. Tive sorte com o meu gato! Tenho dentes...

As tuas escolhas

Os dias sabem-se a si mesmos. Há quem os conte. Eu deixo o calendário e o folclore das datas especiais fazerem isso. Sei que me arrasto contra um muro que avança em meu sentido. Sei que a minha vista alcança outros seres que verei embater antes de mim. Ainda mais, isso! Sei todos os dias que perdi a minha caixa de ressonância, mesmo que só a tivesse tido por uns breves meses. Estava talhado assim e eu reconheci-lhe o valor, e também o vi partir - foi o muro da indiferença que o consumiu e agora preciso folhear as páginas gravadas das nossas conversas porque a memória, claro, mente! Mas basta-me correr os olhos nas linhas que escreveu, três ou quatro, para logo me achar faminta: será que já está pronto o livro para ser possuído?! Eu, humilde, possuir a tua escrita clara e escorreita. Culta. Mata-fome para mim. Porque será que não escreves? Nem um artigo? É um desperdício gastares o teu latim por aí. Só faz-de-contice. As tuas escolhas! 

No Clube Náutico

Tenho por paisagem o interior do restaurante do Clube Náutico, a vista do teu meio-corpo à minha frente na mesa; do lado esquerdo a vidraça continua, atravessada por veleiros lentos e faíscas que o sol empresta às ondinhas de grão fino. Pausei o olhar nesta azáfama de ruído branco visual e tu questionaste: estás triste? Eu estava desconfortável, mas talvez não soubesse fazer conversa sobre uma provável intuição de tristeza. Não tivera tempo de compreender. Mas hoje, passados dois anos, consigo ir a esse momento e responder com a pergunta: o que queres de mim? Como és capaz de ser amoral e tolo - que vergonha sinto, por não ter sabido que eras banal - enganado por uma que ama tudo, em particular a tua conta bancária! A comida, a espetada de lulas com gambas, era só sofrível, o teu ânimo era insuficiente; do vinho nem me lembro! Nos olhos só queimavam os flashes de luz das ondas, as velas às curvas por ali, negras algumas, a estrada pouco cuidada lá em baixo, o empregado com simpatia de ...

Lavagem da cabeça

Sento-me na cadeira reclinada  indicada pela cabeleireira para lavar a cabeça. Cumprimentos, escolhas do menu dos champôs, complementos e promoções. E depois das banalidades ela começa a sessão de massagens no crânio. Ainda me atenho a inquirir onde terá ela aprendido, se é reflexologia, mas logo os botões começam a desligar um por um até ficar a ouvir a música das pontas dos dedos em arcos perfeitos de pressão, o cansaço e a má disposição a escorrerem para o cano da água, o peito em expansão respirando sem bloqueios e solto uns mudos: "isso", "aí mesmo", "pode repetir"? E sem ouvir um único som do que nem disse, a cabeleireira massaja a meu pedido telepático e até para além dele, fazendo esquecer que o tempo tem partes que nos subjugam através dos relógios. Acordo depois, meia dormente, para a música do salão, sabendo que se quiser amolecer ainda mais, é só fazer a máscara a quente e ficar por ali a hibernar mais cinco minutos! Muito obrigada, ensaio dize...

Primeiras reflexões sobre a minha biblioteca

Um dos melhores presentes da idade é poder escolher recordar um estado mental associado a cada fase da vida. A biblioteca pessoal tem um papel de destaque nessa função autobiográfica. A minha não emagreceu com transplantes, destralhe, divisão por separação ou divórcio: mantém-se intacta. Por isso, nela há uma arqueologia de tempos, modas e maneiras de ver. Enchi-a descontraidamente, sem impulsos de obsessão colecionista: um riacho calmo de correntes de doce curso ao acaso da passagem por pequenas livrarias, da feira do livro ou de alfarrabistas, cortado pontualmente por vagas tendências associadas à profissão, ou a curiosidades do momento. Tem também deliciosas revistas que guardam as viagens de sonho que não fiz, e os manuais das que realizei também constam, e até coisas soltas e dissonantes, mas que me importava ler. Uma tímida penetração newage, só para saber o que era, uma pitada de orientalices. Mas houve expulsões: umas tantas ofertas que remeti para bibliotecas externas. Na minh...

Jantar a quatro

Disponho as vasilhas de gupza de gengibre, óleo de colza, e wasabi, na mesinha de apoio - aprecio o aroma delicado e exigente! Distribuo os quatro pratos kavakza pela mesa do jantar. Coloco a jarra restaurada, como agora é um must e nela um arranjo frugal e elegante com as linhas da vida e as outras. Na verdade, mandei trazer tudo pronto! Ainda me seguem?!  Marco a temperatura do forno. Olho as mensagens e digo, displicente, ao casado, que o amo. Desligo de seguida o telemóvel para me concentrar no modo eco-inside. Avanço no corredor, passo a porta, ligo o jacuzzi, pequeno luxo que me ofereci no ano passado. Esperem. Ponho uns aromas a queimar. Se querem saber, gosto de jasmim e ylang e ylang. Acrescento algo mais, é segredo, e um óleo veicular de amêndoas doces. Essencialmente gosto de sentir que faço coisas antigas e uso óleos com uma certa ascese e rótulos de pureza - essências de extração natural por doutos como o Dr. Fherrenci, da Alemanha -, dão-me o ambiente autêntico e crep...

Sobre o Livro "A Ordem"

Na futura saga, de que "A Ordem" é o primeiro volume, três personalidades dão rosto à sociedade global da Terra. Luísa Bósforo, rente à pandemia, conhece Mário Aesth, que por sua vez tinha tido uma relação com Susana Nuvem. Luísa é introduzida numa elite técnica, científica e económica, que cria a disrupção fatal, a singularidade, e convida Mário para participar num conjunto de experiências de instanciação, em que os seus conhecimentos literários são relevantes. Luísa traz para a elite a ex-namorada de Mário, por quem desenvolve admiração e deixa para trás a atual companheira do amigo, Gorgi Lotte, por falta de talento, para a Nova Ordem. Na verdade, ela como o resto da população não escolhida, perecem naturalmente, por morte comum, embora acelerada por doenças virais e guerras. É criada uma nova organização que vai evoluindo. Mas o Centrório aparece como o decisor político centralizado, logo na origem, usando o máximo de tecnologia possível, em detrimento da decisão humana. ...