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A mostrar mensagens de maio, 2020

A árvore .

Não há arte tão bela como a da árvore. qualquer uma. é quase humilhante para um humano a epifania da árvore. como tem ela engenho e tempo de se desenhar singular ao mais ínfimo pormenor? não há árvore feia. já reparaste? nem má. nem inútil, para o homem universal. a árvore é acolhimento dialógico: dos pássaros, dos insetos, dos fungos e de outros em concêntricos mundos, imensamente. qual o seu saber viver? em oikos fazer parte, fazer o que tem de ser. convicta. não deprime por ser mais uma, nem por estar só. árvore ereta ou orgulhosamente contorcida a gemer ao vento, a espraiar veios e desbobramento. matizes de verdes infinitos abrem-se para o céu. sábia geómetra: aproveita o incremento de superfície que há entre o solo e a copa. já viste como se multiplica em altura? como prospera em existência? mesmo quando se retorce, resiliente, sem dor - até bonsai- se conforma. símbolo de toda a possibilidade. árvore. sequência que se dá em simultaneidade e ordem. solidez. estrutura. história. me...

Por estes dias

Por estes dias, meu amor - perdoa que te designe assim - há uma fímbria de luz no perfil da tua ausência. surpreendo-me com a sua concretude. é recorrente. difícil. não me protejo. insisto e volto. e nem é pelo amor ao perigo. é mesmo para tragar em pequenos goles. goles. como de água do mar. sufocam-me. e no entanto. eu sei como tu que o amor não tem qualquer importância. e tem. tal como tu dirias: "assim". na tua finita sabedoria sabias que a ausência é mais presente que a presença. quem não sabe?! que a dor é mais potente que o hábito. a cicatriz fica. a náusea amolece. o júbilo é climax. só na dor constróis o sempre. mesmo no fogo frugal das estrelas. tão fácil e difícil vê-las. e que são? quem sabe? para estes dias tanto faz. tanto faz o real. inegável é a dor, a banalidade e o mal. a rotina é segurança. a disrupção, previsível. mas não cabe na tua vida o meu estilete. por estes dias a luz que me davas faz sombra no tapete do quarto. o quadrado que é quarto. a quinta dim...

Farol.

Paisagem. farol. sinais do cá para o longe à noite: cónicos ou pulsantes; de dia: figura para os fundos. fundos vaidosos de azuis de vestir o céu. azuis de tantos nomes que não digo. não ligo. aguarelas. já me ocupo mais com os caprichos irrepetíveis de nuvens de espairar, de enrolar, de imaginar, de seguir com o olhar. soprar nuvens. cirros. cúmulos. e outras. distraio-me com gaivotas. as suas rotas. os pormenores da vida social das gaivotas. o arranhar da calma solta pelos gritos histriónicos das gaivotas. farol. abraços circulares de vento salgado, doce ou quebrado. ladainha de sereias insatisfeitas. espectros suspensos em universos paralelos. gaivotas. como namoram com o farol, as gaivotas? trazem rimas do mar? o que pode contar quem voa a quem sabe do navegar. e vice-versa. como um dedo no ar o farol se aponta a si mesmo na ordem dos sinais da fala. ou é falo? pater das pequenas criaturas imperfeitas - embarcações - que se divisam a diluir no denso mar. protetor. sábio. gu...

Corpo Nu.

Corpo nu de mulher, prostrado no mato, tal estátua cinzelada em ébano. semente que não floresce, antes se lhe entedia o gineceu intemporal. jaz solitário de antanho: jarrão quebrado, vaso recetáculo.  e o  ato? o ritmo? o pulsar? nada! é de sua natureza estagnar. disparar a mola do desejo no diálogo do abismo com a morte. corpo dócil, prometido e adiado - formula a dúvida e nela a sedução.

Menórias. A Cal

Lembro a cal das paredes na aldeia chã e mater . desde a sua compra. as decisões cúmplices. o perfume posto para ir à loja. o ritual. as conversas até chegar. o passa palavra. o chit chat costumeiro nas ruas com paragem a cada porta. as novidades. os enredos. tantos estímulos. o brincar com pauzinhos. a boneca companheira, nua. com cabelos. o mundo visto de baixo. o sentir pleno. langor. o chegar. o aviar. as conversas úteis. o cheiro da mercearia. da drogaria. da taberna. as lástimas dos bêbados. o resmungar das esposas. o ladrar dos cães vadios. os gritos em fuga. incompreensíveis. o que foi? quem era? as explicações intrincadas e os pontos de interrogação e as interpretações. e a boneca. e o burro a urrar ao sol preso junto ao bebedouro. e quero água. e vais à outra fonte. e empoleiras-te. absorver um cheiro dos deuses. o frescor. a urze. a hortelã. a sombra benevolente. a boneca. a tia. a cal. a cal misturada com ocre. as barras pintadas. a tia pintada. os risos. a boneca vai dormi...

O Tédio.

Toda a gente sabe que o tédio é cinzento. pardacento. que à noite se insinua em insónia e se deita tarde depois de esgotar os olhos e a massa cinzenta mesmo atrás dos olhos. o tédio folheia livros e rejeita quase todos. só raramente se orgasmia numa linha de trama. uma língua que o lambe. e quando finalmente cede o corpo à dormência, vai molhado. sente isso. a vida que há na saliva e faz sentir que há frio no calor. o tédio é sabor misturado de todos os fragmentos como o caril, o grelhado, a salada, o molho tártaro e a cerveja e o café. tudo condensado. pardo. o tédio é porco-espinho. meiguinho, habitué para dentro, resingão para fora. adensa a membrana. é romã. entre tu e fora. e entre os dentros. o tédio cria cascas. labirintos. para ir de um sítio ao mais próximo dar voltas e conviver com acasos. quiçá cansaços. desistências. atrai-se por vazios, os difíceis, os paradoxos de espírito. mas ri caro. não! rir só sarcasmo! e que não o adocem com rostos esticados, bochechas repuxadas, ol...

Há lá

Há lá direito disto acontecer? este peso no peito. a remoer. não posso ser todas as promessas condensadas no agora. assiste-me o direito a respirar. ofegar. sufocar. adormecer. esquecer. sorver o silêncio. o direito a ser devagar. o direito a não me esforçar. receber. mimo grátis. ter direitos. ser incompleto. Há lá direito de me quereres pré-feito. feito todo e de tudos. posso lá sê-lo. sufoco só de imaginar-me tão pleno. a rebentar de perfeição. exausto. Há lá justeza nessa exigência que vai de antes do berço à morte e até se prolonga no além dela. Não há nem lá nem cá esse direito. assim fico assim. pobre e só. cheio de limitações. possíveis as lassidões. ser injusto. não recíproco. até mim virão imerecidos louvores. é mais fácil. ser torpe. digno. aceite. previsível. dar à cauda. talvez. brotar olhares cândidos e malandros em proventosa dose. receber em vez de dar. economizar nas trocas vitais. amorais. viver bem. há cá em mim muito eu. assim é bem melhor.

Abyssum e outros

ABYSSUM. Se tens fome de vida há encontros que te levam para o abismo. Germinam visões de horizontes esplêndidos. Esperam, tal felinos, o teu passo em falso e falham-te o amparo no instante da queda. Tudo pode acontecer.  Até a descoberta de que sabes voar. Os horizontes magníficos permanecem lá afinal: são benesse das aves tanto quanto dos sonhadores incautos. Os jardins maravilhosos. Outras aves. Outros abismos ficam pontos distantes no mapa -  agora maior - dos novos territórios. São meros aparatos de instrução de voo ou destruição. Não tens tempo para lhes dar importância! Os sonhos são brisas sem amo! ..... ESTAR PRESENTE. Inspirar o agora até eclodir em miríades de bolas de sabão, guardiãs de arcos-íris e miosótis. Beber elixires alheios até a profusão dos sentidos diluir a memória dos porquês . Mimetizar os animais nos seus afazeres prímevos, sem necessidades supérfluas. O sol para a alegria, a lua para velar, os rios para fluir, os montes para ampliar a noite. Tudo e...

Igna poesia.

Igna Morna encheu de poemas o corpo, em particular a voz, de graves lunares e a cabeça, de borboletas roxas. E tudo se conjuga em harmonia . Igna apouca com o que lhe fica após o pulsar do ventre ora cheio ora vazio, o seio bombando, o cansaço rude dos dias donde não sobra eros para o homem. Afina o tom, apruma o casaco, escrutina o gesto, toma de empréstimo aquele esgar outrista. Aprende a verter no corpo a prontidão de parir o verso para o qual não nasceu - antes se apossou, sem nexo ou necessidade -  e se feriu de excesso. Não era suposto Igna feia rir assim sem siso, nem freio, mulher de si, extraída do eco dos gritos, como fruto do imo.

Dar Música.

Molda-te na barca do meu colo, embalado pelo lado grave do suspiro e a voz bela no limbo dos sussurros âmbar. Baila assim... fica no molde do desejo. Por mim revoga o despeito no arco do ré maior para o sol sustenido e mantém a dribla do melhor riffe ou então deixa, desleixa, e por ora enrola o caracol a pender entre a bruma dos cilios húmidos, com os dedos introspetivos. Rima e faz bis no lírico blues do marejar à flor da pele que de langor voga quente doce e de frémito alvora a memória de água e distende e forma e alterna e condensa. Tudo é teu sem pensares, não peses, frui, flui, embala assim, fica no eterno absurdo do princípio fim. Bora viver a cilintar bafos quentes a desbotar pró azul?!

Ser Esboço.

Ser esboço e bafo viver no borrão lilás da tua aura pulsar na tua emoção...

O Namorado Nininho

Não sei quando tudo começou, mas permaneceu até à puberdade como o seu melhor amigo para brincar, aliás: namorado. Carlos, o Nininho, tinha um espólio de brinquedos muito incaracterístico, não só pela vastidão, como por não ter seleção de género. Carrinhos de todos os tipos e tamanhos, mecanismos, kits científicos, legos, muita loiça e miniaturas da vida doméstica, bonecas, enfim!.. Um paraíso! Mas o melhor era mesmo a criatura: o mais gentil e cordato parceiro de brincadeira. Ela era a mais velha: tinha mais três meses, o que na altura era muito importante! Um dia a criançada ficou em alvoraço: ia nascer um irmão ao Nininho e ninguém percebia como aquilo tinha podido acontecer, aquela barriga, à beira de se transformar num irmão. Claro que todos tinham tido um transporte primeiro: uns era de avião (esses vinham de Paris), outros de camioneta, de mota, e acho, que uns viriam mesmo de cegonha. Agora, uma barriga!... Aqueles argumentos, calavam-nos: ninguém debatia este assunto algo estr...

Quarteto

Deslizamos pela Corniche até ao porto. Tu aprecias o castanho-bronze da paisagem e as sombras nacaradas no solo pérola. Deixámos para trás a poeira a incendiar o céu em congeminação com o sol; os túmulos de profeta projetados nas dunas em revolução. Sorriste quando te olhei de soslaio e suspiraste pela memória do dia que passámos junto às grandes brechas do lago antigo, os charcos celestiais onde vagueiam as núvens e o azul-lilás tinge o verde Rembrant e os tons de zinco a palpitar nos afazeres dos patos; a humidade quente, o marulhar dos aromas misteriosos, os segredos dos insetos, a profundidade do espaço povoada por sons a todas as distâncias até adentro da pele, na zona do afeto. A noite começa a cair. Os revérberes acendem o teu perfil compassadamente. O olhar foca-se no ponto de luz diáfana que dobra o cabo e desliza sagaz no veio de espuma que brilha ao luar. Só depois chega, nostálgico, o som grave do apito, se refugia no carro e desiste de prosseguir. Somos visitados por fragm...

Mikuá

Ouso, Mikuá, te invocar hoje, que está frio dentro, para te inquirir sobre os restos de teia que se apegou aos dedos pegajosamente. como faço para libertá-los? ainda que tenha passado tanto tempo e a solução seja ignorada. vamos à lagoa. voltemos à lagoa com a Bonnie a saltar estupidamente e nós ainda com distâncias fluidas, entre nós e tudo o resto, menos com a Bonnie que nos interpela e liga à natureza. à natureza meia-meia à nossa volta, nem forte, nem fraca, depauperada, ainda assim apaziguadora do sentimento estéril e urbano. ela saltita como uma doida, está feliz sem se importar com as nossas complexidades e a conversa corre sem fluência, só porque sim, pelas aparências, sem uma convivência sólida; uma entrevista de seleção especial sem sujeito nem objeto: uma luta de trincheiras. não foi nesse dia nem no seguinte que algum de nós se deu por vencido! tudo correu sobre o pano da aparência: congelamento da verdade sentida. tudo se adiou, se infletiu no fluxo espontâneo. e daqui e d...

Dag, Dia

Não sei como tamanha vulgaridade se transforma em nome próprio, mas assim é na Noruega, talvez pela importância desse dia de vastos limites com a duração de 6 meses. Dag, em português, "dia": um homem muito afável; Brieberg: a sua mais recente morada, cheia de raízes na memória de infância e do pai desejado, mas afinal padrasto, repletas de caçadas e pescarias nos lagos e bosques de faias dos inarráveis fiordes. Compensava a persona - aquela fantasia carnava lesca que nos envolve, que para Dag era o hábil vendedor de populares casas de madeira - , com a pimenta da ideologia nacionalista anti-Europa, amortizada nos dias feiticeiros de alcóol e banda -, onde era baterista e palhaço de serviço, camarada ad eternum da malta de há tantos anos - que mitiga a falta de luz de todo um meio ano no underground e festinhas de ocasião nos bares da encantadora cidadezinha limite de Tromso, desde o pop-rock ao jazz. (...)