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A mostrar mensagens de abril, 2020

A Atriz de Hollywood

Serena era de uma fealdade feérica. O rosto assimétrico, comprido, com cicatrizes, o nariz caprichoso e disforme, o cabelo pardo, seco e espigado. Empertigava-se na máscara da maquilhagem, os lábios oferecidos em vermelho obsceno, a saia canudo constrangedoramente curta, de onde se soltam umas canetas envoltas em collants de rede. As sapatolas desmanteladas. E um sorriso maravilhoso, verdadeiramente transbordante de confiança e positividade. Ao pé dela ficava-se contorcido como um ponto de interrogação. "What the hell is this?!" Serena afirmava convicta que faltaria muito pouco para receber um convite de Hollywood, que estava já a começar os ensaios, que me podia mostrar as cartas de convite e até já havia competição entre estúdios pois era reconhecida como uma estrela em potência. Serena era uma jovem adulta. O seu sorriso era contagiante. Ao ouvi-la a náusea crescia cor de malva e a cheirar a Ylang Ylang. Apiedava-se o coração, que amordaçava a razão. A razão de amar no out...

O Investigador

Palavroso, Gonçalo Quelhas era todo ele prosódia e verborreia. E disto e daquilo e porque efetivamente... Efetivamente era um predestinado, dizia. Sabia que iria dar grandes feitos à humanidade, até tinha uma professora amiga com quem se abria muito que o incentivava. Alguém que percebia o seu valor. E qual era o seu valor? É que a mãe tinha tido cancro e fora-lhe amputado um braço. Ora ele estudava muito e sabia que um dia - isso hoje parece impossível-,  "mas eu sei que vai ser feito e eu vou participar em investigações médicas que permitirão recriar um braço a partir da parte amputada. Eu sei de muitas investigações do futuro - é um mundo maravilhoso- , tenho lido sobre ciência. Quero inventar uma forma de fazer crescer um membro novo a pessoas amputadas. Sou só médio na área de ciências (...). mas tenho tudo planeado. A minha amiga professora prometeu apoiar-me em tudo o que eu precisar. Gostei de falar consigo, mas não preciso de ajuda. Estou bem. Estou muito motivado e sei c...

A Astronauta

Eu sou a Marta e tenho um problema - dizia a Marta enfiando-se a fundo pela cadeira do consultório. Ninguém acredita em mim e só me dão conselhos estúpidos, mas eu sei o que quero e eu quero ser astronauta. Eu sei que aquilo que eu quero eu consigo, não me pergunte- eu simplesmente sei no meu íntimo. A terapeuta questiona para compreender a trama do pensamento e do sentimento de Marta e dos seus interlocutores, a história daquilo tudo e mais alguma coisa. E Marta prossegue: o meu pai é o único que me ouve, mas aconselha-me a desistir. A minha madrasta já se cansou de me dizer que é muito difícil, que em Portugal não se formam astronautas, que por ser mulher ainda vai ser pior. Agora não falamos mais uma com a outra, para não nos zangarmos. Tenho saudades da minha mãe. Ela morreu com cancro há dois anos atrás - e dito isto enfia-se uns centímetros mais para o fundo da cadeira deixando o vestido erecto subir pelo corpinho magro. Marta apruma-se com um vestido demodé de fazenda verde seco...

O Chefe Máximo.

Muito foi o caminho até aqui chegar. A mãe, doméstica, como se dizia, acompanhava com esforço os seus progressos na escola, fomentando o sucesso na expetativa da ascenção social. Um dia serás Doutor! Mas Máximo achou mais prudente evitar o liceu. Acomodou-se pela escola técnica de artes e artesãos e logo se veria. Já trabalhava na oficina do pai. Dava para a boite. Dava para uns discos dos Pink Floyd. Para comprar uma nova guitarra e umas jeans de marca. Não era fácil, mas os amigos eram dali do bairro da periferia. Ninguém que o superasse muito nas posses. Por isso, talvez por isso, não tinha querido ir para o bairro de Alvalade, onde havia o liceu. Não queria suportar os queques e sentir-se humilhado. Haveria de lá chegar! Era paciente! Foi estudando os movimentos ascendentes de alguns desafortunados que vingaram na vida. Leu biografias. Sonhou e aguardou. A namorada engravidou. Já casados, voltou a engravidar. Arranjou um pé de meia no comércio local. Compraram casa que venderam e ...

Gildo para os amigos.

Hermenegildo Trunco. Gildo para os amigos - é um prazer acrescentar o seu nome na minha lista de belíssimas amizades. Gato com rabo de fora, mas que importa?! Fácil é perceber a faísca do quadrante superior esquerdo do olho direito em contraponto com a inclinação do lábio que se afina em gancho para o mesmo lado. E daí? É assim desde que se conhece, faz o que quer, joga em frentes contraditórias, até ao remate final, e ninguém se opõe. Jogos sociais - ensina à sua predestinada-, inocentes e eficazes. A beleza está no ânimo que contagia, nos gestos redondos e expansivos de bailarino onde compõe a sua prosa de bandido. Eles gostam! Ficam felizes! Sinto-me alguém imprescindível nas suas vidas. O meu talento a todos beneficia. E a mim não prejudica- eufemiza e sorri da sua graça! O bem é uma banalidade e eu sou o seu profeta - ironiza e imortaliza no diário pessoal de salmos, orgulhosamente, com numeração romana. Inequal, ergo sum - murmura. Sente-se um exclusivo, inspira prolongadamente ...

Monika e ele

Monika tem nichos de memórias. Nem todas lhe pertencem. Acolheu-as órfãs das histórias biográficas dos seus amores, entre o enrolar do beijo e o desatar dos pergaminhos. Fê-lo porque sabe que o amor é um deserto perene onde nada mais permanece; o excedente floresce em cristais rosáceos e só a vida simples persiste, clandestina, resiliente. Os oásis são os outros. Hoje Monika caminha naquelas gorges do Alto-Atlas, cavadas, profundas. Observa os vultos que após a pandemia passam evitativos: encontros fugazes, bailados em vibrações abruptas de mosca. Anónimos solitários que por ali vagueiam em capricho sinusóide, libertam aromas de esplendor  exótico e olhares pudicos, tensos de atração-repulsa condensada num fatídico tango! Escrutinam os promontórios, penetram com foco de caçador experiente as fendas mais finas das grutas fundas, invejando a oblíqua fecundação de luz, afunilada, mas vencedora; capturam com avidez as poses dos arbustos empoleirados, infelizes e orgulhosos; e...

O Rapaz

Lembra-se do Ti Vicente? Sabe como era hábil em propagar histórias metade verdade, metade invenção! Dizem que se lembra das de há décadas. Décadas!  E continua a contá- las com aquela pitada de fantasia que ninguém sabe ao certo em que parte está.  Quase um século, e mantém  as versões, o malandro. É velho como ninguém. Oh Rodrigues, vocemecê é de fiar e sabe bem que o rapaz era amalucado! Ainda assim não  merecia o destino que lhe coube em sorte.  Contam-se histórias. Nunca me importei. Mas nos últimos anos é  que não me livro de um pesadelo, que volta sem aviso e me deixa perplexo por semanas.  Pois resolvi-me dar-lhe tino e perceber de vez o porquê da insistência e lembrei-me de vocemecê -engraçado que já não dizia esta palavra há  que séculos desde que metia conversa com os homens do barrete negro, que sempre conheci desatualizados e rezingoões, cá da terrinha, vocemecê sabe. Pois como estava a começar a dizer-lhe, Rodrigo, eu fui visitar o ce...

O Gancho

Daquela tarde ficou um gancho na memória. No campo da bola, tu e eu, de calças coçadas, as minhas Lewis e as tuas..  não  importa!... "Pega daí oh merdas, chuta, barra, gooolo,  fuinhas, eh pá, bule, dança piolhoso, anda, caprinos dum cão,  rosna Benedicto,  Eusébio,  campeão!  Goologuiiiilhermeee!  E cai tudo! Esconde o esférico lá na tua casa, na minha não guardam nada, os piolhoso dos meus irmãos vendem tudo ós drogados duma figa, esconde lá, anda, na tua casa a tua mãe guarda, conheço a tua mãe, apareceu junto ao carvalho ao pé da barraca e ficou lá a olhar prá gente como parva a ver o jardizulógico, foi um fartóte, mas depois a gente foi lá ter com ela e deu-nos rebuçados e as tuas calças, vês, ficam catitas cá no man! A tua mãe é um bocado xoninhas, mas fez-me uma festa na cabeça e tudo, nã quis saber dos piolhos, c'até m'arrepiei dos culotes ! A gaja da minha mãe até se enciumou e tudo, chamou-me logo, a chiba! Falou bem alto para o meu pa...

Voyage

Sur le Pont Neuf, um extremo arrepio de pele! Amor de comunalidades extraordinárias e intensas de tão frugais e espásticas! Deixa-me contar-te como fomos delírio e projétil de emoção explosiva! Foi assim como vais ouvir! Fizemos aquela viagem subliminarmente num ramo ou dois das nossas conversas infinitas. Fomos corajosos impúdicos, mas nada nos impediria dessa aventura sensorial folie-à-deux! Ainda sem memória dos corpos possuídos marcámos dois quartos separados no mesmo hotel. Fizemos variadas combinações. Numa fomos escrupulosos, noutra cedemos progressivamente e no take alternativo evadimo-nos despudoradamente para o indescritível! À noite costumavas abraçar-me à janela, embevecendo o olhar na Paris de luz palpitante e estelar. Depois, ao acaso, calcorreávamos as ruas de Montmartre e Pigalle, bebiamos goles de álcool repartidos com beijos voluptuosos, dançávamos na rua, de mãos dadas, num vai-vem de concertina e cantávamos Aznavour. Declamei Paul Éluard quando a moinha nos colou a ...

Strude

Strude! - insistia Blaumvil! Escutava atentamente. Strude! Strude! - replicava a cave profunda na rocha sedimentar milenar. Demovido, senta - se e aguarda atentamente, fuma atentamente, sonda o estado interno atentamente; engole um trago de saliva aromatizada de hortelã profusamente vitoriosa naquele microssistema da mina de água; no tímpano o pingo gutural de mil frequências assíncronas gémeas de cristal  ricocheteia com a dignidade justa e irrelevante da sua singularidade. Strude - murmureia disperso da vontade anterior! Otto equipado de botins e capa impermeável penetrara, lanterna de mineiro como um chifre de unicórnio e Strude quisera acompanhá - lo! Fazia uma boa hora que desapareceram por entre o rumor cristalino e o marulhar a esmorecer até ao infinito ressonante mediado por pequenas alfinetadas das gotículas cadentes... Strude! És tão frágil! Como podes arriscar longe da minha mão auxiliadora, maternal, que desprezas seguramente... Strude! O corpo, camada sobre camada, um...
Carta 5 – Hoje Hoje é um dia em que o meu invólucro se comprime em mim e deixa uma linha sinuosa vertical, em refluxos trémulos, mas de uma definição bem concreta. Hoje é aquele dia da 5ª carta, aquela do desinvestir, dizer que não valeu a pena o sonho, o tempo foi perdido, a comunicação impossibilitada, a vida desperdiçada. O que eu senti foi bonito tantas vezes. Fica o que eu senti. Fica também o que eu imaginei. Fica ainda a solidão, ou restar sozinha comigo, o sentido só meu. Ainda assim fica a direção: pra frente, sempre pra frente, cabeça erguida, dei o meu melhor, mas não foi possível...não tinhas disponibilidade! Eu com pouco não me contento! Tenho pena que não consigas ser mais feliz, fiquei com a ideia que te alienas a valores de “faz de conta”, a materialismos, que te iludes, que te mentes....mas não sou tida nem achada em nada disso. Só não te deixo negar a minha existência! Estou viva, gosto de quem sou, guio-me pela integridade, pela entrega plena, pela sinceridade ...
Carta 4- Ontem Ontem surgiste de mansinho na minha atmosfera. Fizeste a rota do meteorito, curvaste naquele ponto e entraste no meu espaço, sem mossa, com uma tranquilidade imensa!... Deslizaste a sorrir para o meu leito e no retrato desse momento ficou o meu sentimento de garota perplexa com um molho de balões ao colo, que ora agarra, logo fogem, dispersando-se no céu multicolor. AAAHHH! Tão bonito! Tão breve foi o tempo de tê-los, partiram indelevelmente, e continuou a ser tão bonito! E no retrato que vou emoldurar na memória ficou ainda o apego da curva do teu braço, por recantos secretos de mim e mãos para enlaçar e olhares para iniciar... foi assim que chegaste ontem, um pouco mais adentro, tão perto do arrepio, entre a calma e o frenesim, o espasmo, o espanto, o doce do encanto...ontem sim “acantonaste” em mim... Yours sincerely
Carta 3- Conversas de Tempo Meu querido L. Sem que “meu” signifique qualquer posse... apenas, L. do meu querer, L. desejado, portanto querido, por mim! Como estás hoje? O que podes partilhar hoje comigo? Como está o tempo? Não o Tempo do clima, que está quase sempre divergente do que devia, o atrevido (!), mas o Tempo de viver, para usar, gastar, despender, perder, aproveitar, gozar, na vida... Como estás de Tempo?! Como está o teu Tempo? Está como o queres? Ele está-te favorável? Fazes o que queres com ele? Não o tens? Tem-lo pouco? Queres pensar no teu Tempo, L.? No Tempo que foi, é e será...No Tempo de cada um de nós dois, no Tempo possível em comum. Como vamos falar do Tempo? Como um recurso, como um tirano, como um bem que se possui e perde, ou ganha, como?   Vais estar Tempo comigo? Vais ganhá-lo, perdê-lo, usá-lo? Vais arranjar Tempo para nós, vais roubar Tempo a alguma outra coisa, vais deslocar, mobilizar, transferir Tempo? Vais mudar o Tempo, no Tempo, com o...
Carta 2 – Tu em Mim Truz-truz, estás aí? Quem és? Como vens vestido? Diz-me a cor da camisola para eu te reconhecer!   Vi-te tão poucas vezes e há tanto tempo que não te sinto... Está frio aqui... passam vultos, seres só com contorno vago e conteúdo gelatinoso, quase transparente, quase sombra, seres que se movem vertiginosamente no mesmo lugar e eu viro-me para o teu ângulo de visão (para ondo penso que possas olhar) e grito: socorroooo! Como naquele quadro de Munch....   Estás aí??? Truz-truz! Responde, estás?...Quanto de ti está aí?! Deixa ver como reages ao toque! Deixa lamber-te e absorver-te por todos os sentidos... Deixa-te passar também pelos meus poros e ajuda-me a recriar uma imagem de ti dentro de mim, para que me seja familiar, para que sinta o conforto de te reconhecer, para contar contigo numa extensão de mim, para perturbares o meu conteúdo e me revolveres qb e depois se me acalmar a mistura estabilizada! Dá-te-me e dá-me tempo depois de ti! Para fazer...
Carta 1 – Viagem Dentro Se eu fosse um território, queria mostrar-te os meus caminhos, os meus estares, os meus pertences, sobretudo os imateriais, os meus seres, as minhas histórias e explicações, as aspirações, os sonhos que enlutei e o gerador de novos sonhos.... O meu lado máquina, o meu lado lua, o sol dos meus sorrisos, as vontades fracas e as loucas! Queria que dormisses nas minhas casas, te despisses frente aos meus espelhos, te alumiasse a luz fosca dos meus candeeiros, por vezes das ténues velas, passasses as mãos pelo soalho lavado, rolasses no tapete felpudo languidamente, abrisses os armários e fizesses muitas perguntas, para eu ruborizar, te tranquilizar, me esquivar por momentos, mas voltar com resposta...queria dar-te o meu mapa, informar-te do meu desvio gravitacional, das estrelas secretas que me orientam... queria o mesmo, ou equivalente, de ti! Queria... Yours sincerely
As roupas informais aconchegam-se-lhe à pele mumificada enquanto passeia no  jardim contíguo ao palacete de Verão acompanhado pelo rumor imaginário das vestes de Leila, volúvel como a sombra à direção incerta da brisa, permeável ao contorno das ervas e árvores junto ao canal. É interrompido pela alegria vivaz de Ramuk que salta até ao peito e o esmaga até uma dor abrupta se avivar. Sente os olhos humidecerem de gratidão pela clareza da sensação que contraria a tendência confusa e lúgubre do remorso que se vem escavando sob os seus pés, como uma invasão assassina em conjuração nas bases da sua existência. Pode por momentos sentir o aroma acre e forte da vegetação junto ao canal pleno de vida, combinado com os lampejos incendiários da superfície estrelada de insectos em intenso labor. Suspira abrindo os pulmões. Captura de catadupa o piar chamativo das fêmeas do urubu,  as cores ocre-pastel do orlado deserto quase adivinhadas no horizonte errático, vencidas por aromas de café e ...
Fosse eu arqueóloga e estaria na minha tenda no Tel Al Shabib a olhar serenamente absorta para as suas petittes piéces expelindo ahs e ah-ahs acompanhados de círculos caprichosos de núvens malva do charuto partagé com o meu petit ami belge. Je suis presque lá! Je lui dirais expelindo uma fumaça mais assertiva. Crime!  - disse ela! Diriam. Mais non! Pás de crime! Um enleio complexo de trincheiras! Mapeamento em curso!  Camadas sedimentares e névoas - faço puzzling, desvendo ou invento teorias de conspiratórias a escapatórias, explicações ou saídas sublimes, não sem perder pontualmente e recursivamente a face.. e assim continuei tecendo o assunto como tão bem sabe da carta que lhe enviei a partir de Alexandria.