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A mostrar mensagens de abril, 2021

Noites Vãs

Estou sentado à minha secretária. A cismar. A gata do jardim expira a sofreguidão em gritos lúbricos. A memória asperge o champanhe do meu casamento: clap! Fchchch! Não me demoro neste flash. Outro esguicho traz-me a lágrima que turvou a primeira vez que vi o meu filho em aromas de éter. Inspiro longamente - o ar cheira a bactérias em decomposição das folhas mortas da begónia aqui à frente. Tenho a janela do quarto escancarada. Está um friozinho de primavera marota! Retorno ao vegetal de eleição, agora orlado de prata lunar. Tenho tido longas conversas com este meu "pé de laranja-lima", o meu mindinho. Recebo conselhos. Mas não sou um romântico. Fecho a janela porque está frio e quebro a conversa onde calha, deixando a planta a falar sozinha, ou talvez com a gata. Faço voz paterna para trazer os meus podengos prá mesa. Fracasso. Segue-se um ronco hitleriano. Por magia, tenho num instante, a mesa plena. Olho para o design dos dois rostos. Saíram à mãe! Nem piam! Nem para pedir...

Finalmente Garotos!

Os primeiros anos do Liceu  abril 26, 2021 Quando cheguei ao 3° Ciclo de hoje - que naquele tempo era o primeiro ano do Liceu - , não levava amigos ou conhecidos. Pagava o preço da determinação! Muitas colegas tinham ido para a escola comercial. Neste novo mundo, tinha a vantagem de conhecer o local, pois mantinha-me em Alvalade. A turma era um mimo e pela primeira vez tinha garotos. Eu que já olhava para os de 15 e 18 anos, achei-os uns eunucos. Mas logo me conquistaram com a sua imensa gentileza! Nunca vi um grupo assim de rapazinhos: eram uns cavalheiros, uns gentleman. Ainda me lembro dos seus modos delicados, da sua voz, em tom baixo, - excelentes verbalizadores - que não nos atacavam com força bruta nas aulas mistas de educação física. Adorei a experiência! Éramos fifty-fifty em número de meninas e meninos. A professora de Inglês teve a triste ideia de falar só em estrangeiro, logo no nosso primeiro ano. Que angústia! Em compensação arranjou-nos a cada um um nick name que ado...

Crescer, Crescer, Crescer

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A entrada no ciclo preparatório foi vivida com sentida alegria e curiosidade. Novas amigas, muitos materiais escolares com cheirinho bom! Ainda me lembro de snifar a papelaria da escola. Podem rir-se, mas eu tive paixões sensoriais, como o cheiro do guache, o som do xilofone, o aroma humano do ginásio, da bola de basquete, a textura do barro, e tantas, tantas outras experiências sensoriais. Porém, nem tudo eram rosas nos primeiros tempos: desorientava-me no edifício da escola, não encontrava as salas, não conseguia perceber o horário, distraía-me nas aulas e chegava a dar respostas obtusas. Fui até censurada por distração e mau comportamento! Além disso, experimentei, pela primeira vez, ter negativa nos testes: logo à estreia, de português e matemática. A matemática parecia-me absurda: contas com letras?! Só poderia ser brincadeira! Não dei importância a parvoíces. Já a português, reparei que a minha nova amiga tinha bons resultados e era uma grande leitora de lazer. Sendo assim, inici...

A Professora Malvada!

A professora Virgínia tinha apenas 18 anos e era daquelas amadoras colocadas pelas terras recônditas de Portugal para ensinar o povo a ler, escrever e contar; adorar o poder instalado; conservar os bons costumes; ser humilde e continuador do papel de género. A professora tinha direito a uma casa do Estado e, com sorte, a um marido de "boas famílias", com terras, na aldeia! Claro que eu, com seis anos, não sabia nada disso. Fui para a terra dos meus pais viver com a avó para poder entrar mais cedo um ano na escola. Pensando bem, não se compreende. Seria por influência social local?! A verdade é que a sala estava a abarrotar com alunas de todos os anos da primária. Algumas, como eu, tinham que levar uma tábua para amparar os cadernos e livros e sentávamo-nos em banquinhos individuais. A professora via-se e desejava-se para ensinar todas. Talvez por isso, andasse sempre stressada. A professora Virgínia não me ensinava praticamente nada: dava-me uma qualquer banda desenhada e man...

Tirar o Retrato

Tirar o retrato era sempre uma comoção, pelo que ficámos com esses momentos bem guardados no cofre da memória. Naquele dia, estávamos com o pai. Não me lembro das mulheres, nem da mãe, nem da avó - deviam ter ido ao médico. O pai, machista e pouco habituado a tratar de nós, deu-nos independência para cuidamos da nossa imagem. Talvez as roupas tenham sido escolhidas previamente pela mãe - certamente que sim, no meu caso um vestido lindo de veludo vermelho com florzinhas brancas dispostas em colar - mas o penteado estava por nossa conta. Eu tinha oito anos e o mano, cinco. Ele tinha uma cara de anjo - melhor, de anjinho - doce e dependente. Fiz uma última verificação, após ter desenriçado o meu complicado cabelo; o mano penteava vertiginosamente só a parte que via ao espelho: a frente, portanto! E repetia, repetia, com o pente metálico, acamando a franginha a fujir à polícia. O pai lá decidiu que chegava, não antes de reparar no meio penteado do mais pequeno. Toca de rir e dar-lhe um ret...

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Esta história é muito simples: um haiku de vida! Quando eu era bebé, entre os seis meses e os três anos, vivíamos numa casa, que depois trocámos. Era eu, a mãe e o pai e, claro, a avó de negro. Conta-se que eu não descansava, nem deixava dormir ninguém. A minha mãe seguia um conselho da sua que era privar-me de chucha: que grande disparate! O assunto era complicado o suficiente para ter tido consultas médicas e ter sido medicada - pasme-se! Tenho memórias quase fantasmagóricas desse tempo, que nem sei se são reais, mas lembro-me de ter uns amigos: eram três irmãos, ele com uns dez anos, elas por aí próximo, que criaram uma relação comigo! Sem me lembrar de nada em concreto, apenas sobrou um sentimento amoroso por aquela gente, e uns flashes dos seus rostos. Quando eu tinha a idade com eles me entretinham, precisámos de um serviço do pai deles e então as famílias visitaram-se. Não imaginam o encantamento que foi rever aqueles três anjos. Elas morenas, ele ruivo. Lembrava-me da expressão...

Perpétua.

Conheci-a vagamente na adolescência dela. Eu era mais nova uma meia dúzia de anos. Via-a cirandar pela rua, conversando aqui e acolá, mas o que me atraía a atenção era a beleza saudável da rapariga, sempre alegre. Muito loira, de olhos azuis e expressão cheia de luz, a Perpétua, que era boa na escola, aprendia para cabeleireiro. Quando passava, extrovertida e perfumada, era impossível não ficar de olhar preso à vibração que lhe contagiava cabelos e saias, soltando-os em ondas harmoniosas. Era a rapariga mais bonita que eu vira até então.  O liceu e a minha vida em geral desencontraram-se dela: eu a preparar uma carreira escolar longa; ela a abreviá-la com a pressa de casar. E casou, cedo! Talvez antes dos vinte anos. Ouvi dizer que estava triste e se dava mal com a sogra. Ouvi dizer que se envenenara. Antes tivesse fugido, arranjado um emprego longe dali, emigrado, tivesse pedido ajuda, se divorciasse. Perpétua! Perpétua! Nem o nome, nem a graça... Antes se chamasse Dominga ou Anac...

A classe da professora Efigénia

A classe da professora Efigénia estava bem orientada. As carteiras dispostas em três filas, cada uma com garotas de um nível homogéneo de inteligência, estimado pela professora. A arquitetura da sala era moderna para a época, inaugurada por Marcelo Caetano; o quadro verde; o pátio espaçoso com uma rede ao fundo, onde, para desgosto da diretora, se encostavam algumas barracas. Tirando esse contratempo, a vista era desafogada para o aeroporto de Lisboa, já na sua extremidade, sem ruídos extraordinários. A professora Efigénia era simpática e pintava quadros que expunha pela escola. Quando eu subia pelas escadas que levavam ao piso da sala de aula, parava sempre um bocadinho para admirar o novelo caprichado de nuvens num céu romântico do tamanho da tela na parede do hall. Aos sábados, a professora dava aulas voluntárias para quem quisesse fazer trabalhos manuais e eu lá estava sempre para fazer ovelhinhas fofas com algodão e outras colagens! Também me metera a fazer malha para nascer um ra...

No Limbo

Andava na primária quando ventos ciclónicos passaram por Portugal. Caíram árvores e eu não fui à escola - talvez por isso, dirigi-me à casa de uma colega que vivia por perto, para ir buscar material escolar. Na ida, o vento tornava a respiração difícil. Depois de já despachada, constatei que não podia regressar. Insisti, mas o vento não cedia. Intimidada, voltei à casa da colega, talvez para ganhar tempo, ou à espera de uma proteção maternal, mas encontrei-me de novo abandonada à prepotência da natureza. A Grande Mãe, mostrava a sua outra face! A minha disputa com o vento estava no empate e comecei a ficar sem forças. Escondi-me por detrás de uma escadaria e recuperei coragem para o combate. Surpreendida com a repentina solidão - não se via ninguém na rua, não se ouvia nada para além do silvo do vento nos ouvidos -, todo o corpo esmagado, o equilíbrio periclitante: fiquei verdadeiramente assustada! Experimentei diversas posições e até rastejar, mas nada! Naquele momento, que foi vivido...

Marca d´ Água

É! Hoje faço tantos anos! Para o próximo ano, vou fazer um reset . Estou a pensar retomar nos quarentas.  É uma boa idade para recomeçar! Posso levar a harmonia à maturidade e à contabilidade de vida um balanço de qualidades adquiridas e de trapalhadas irrepetíveis, agora que as sei.  Hoje não pude festejar os meus anos. Trabalhei intensamente! Aceito! Mas muitas vezes acertei em sábados de aleluia e páscoas, até no nascimento assim foi. Ah, e sou Touro, só por duas horas. Quase Carneiro. Não percebo muito de constelações preditivas, mas preocupou-me aquela frase fatalista da avó de negro... A avó enviuvou mal casou e  nunca se separou do filho - o meu pai - até à sua morte aos oitenta e quatro anos, em que, puf, deixou esta vida num instante, sem dar de si! A avó de negro nunca saía à rua por motivos fúteis e a sua longa clausura voluntária, após a viuvez, traduziu-se numa aprendizagem dos sinais discretos e intersticiais da vida. Ela parecia adivinhar e prognosticar co...

Um Limiar no Lumiar

Quando eu tinha uns cinco anos, a minha mãe começou a trabalhar em artesanato. Na fase de aprendizagem subíamos a um terceiro andar a pé, onde umas senhoras sentadas vestiam bonecas. A instrutora tinha uma bebé. A janela aberta dava para um pátio interior, que eu só conseguia ver em bicos de pés. Durou pouco essa experiência. Ainda me lembro dos odores do prédio, da subida difícil das escadas, do clima feminino da sala atelier. É que o casal faleceu num acidente de ambulância. Só a bebé sobreviveu. Foi a morte mais dramática da minha vida precoce. Lembro-me do mundo desabar: era perseguida pelo paradoxo da situação, pelo ténue fio de ligação ao futuro que representava a criança, pela suspeita de que a morte poderia surpreender, sem dó, nem motivo. Todas as artesãs seguiram com a bebé para o Lumiar. Uma irmã da jovem instrutora, dera seguimento ao seu negócio, ficara com a criança e com as trabalhadoras. Deste modo passei a acompanhar a mãe numa longa e prazerosa viagem - passeio pelo L...

O Estranho Caso de Mini Maria

Ela estava imersa num espesso banho de espuma. O frisson das mensagens levou-a a mergulhar a cabeça na água tépida com sais de morango e fruta selvagem. O correio ia e vinha à velocidade do electrão, pleno de sábias asserções. Era ver qual dos amantes virtuais se candidatava a um qualquer Nobel, ou a todos. Por isso, um belo dia, quando ele sem nem porquê, virou a página da modernidade líquida, ela escorregou borda fora com a banheira e tudo! Estatelou-se na cozinha do homem, mas sem ruído, em cheio sobre o tapete, desnuda, no charco absorvido pelas malhas da tessitura bangladeshiana. Ele nem deu conta e continuou a leitura, mas ela, assustadíssima, puxou a banheirinha, início de século XX, a cheirar a sabão Clarim, para debaixo do móvel vintage dos copos, e escondeu-se sob a ruga do tapete, que lhe serviu de gruta, enquanto se refazia da situação. O homem dos seus amores perdidos, estava ali imóvel, atento à leitura, resmungava entredentes pontualmente, dava risadinhas como um ton...

Podia ser hoje

Podia ser hoje que me convidavas para um passeio no teu carro diferenciado. Iríamos a um local apresentado com ar de tenho-uma-surpresa-para-ti, onde iria ouvir as tuas histórias intermináveis e cansativas e mesmo que eu te amasse, iria maçar-me na mesma, mas disfarçar com um sorriso complacente e deixar-te usufruir do meu tempo e da minha atenção plena! Tudo por amor. E iríamos olhar as rochas e as ondas caprichosas, mas ainda assim, as mesmas que posso recordar ou imaginar sem ter de gastar um dia a ouvir-te contá-las e forçar opinião. Posso imaginar uns beijinhos, módicos, o hálito sofrível; a dureza das escadas onde nos sentamos, a textura da areia, a aspereza dos teus caracóis rentes, o receio de ver as tuas rugas, os vincos de expressão, tão marcados - assim tão perto-, o vómito disfarçado que me daria o teu olhar repousado no meu, sem expressão. Vamos aonde?! Que perfume usas? Embora! Vamos embora! Não seria corajosa o suficiente e preferiria um café numa estação da alma, como o...