Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2021

Os Espantalhos

Tio, para que é o boneco? É mesmo para os passarinhos não comerem? E depois morrem de fome? E se nos outros sítios também houver espantalhos? E se todo o mundo tiver espantalhos? Eles morrem para sempre? Escusas de rir de mim! - eles morrem e acaba-se a espécie. Gostaste mais?! Não me respondeste sempre tio. Vou perguntar à tia. Não está?! Então vou brincar com a Clara e o Rui. O Tó viera aos cinco anos, de Moçambique, para viver uns tempos com os tios da Quinta Formão. Os pais viriam mais tarde, para Lisboa provavelmente. Era já de ladainhas, falava pelos cotovelos e fazia experiências que não lembravam mesmo, ao diabo! Um dia enfiou feno nas cuecas da Clarinha, até ficarem como uma almofada e ela deixou.  Com o cimento das obras fez atrás do telheiro uma cidade medieval, castelo, ameias...raio do rapaz, deixou aquilo secar e foi o cabo dos trabalhos para tirar, mas o tio reconheceu talentos ao sobrinho. Gostava de espraiar ao vento: atirava-se do alto do covão numa correria em di...

Os Sonhos de Clara

A carruagem encalha na subida. Clara sai para respirar. O ar é denso de puro. A pele encrespa com a frescura do lugar. Ela rejeita o casaco leve oferecido por Ema. Quer sentir aqueles limites que pertencem indubitavelmente ao seu corpo. Sente-se mulher por bónus. Sorri para o lado da brisa ocultando de Ema a reação excitada e refresca as faces entretanto coradas. Estou viva! Sou uma mulher viva e rija! - pensa. Satisfeita, pode então alinhar o compasso do olhar pelo horizonte amplo, fazendo de si um epicentro. A ideia aborrece-a um pouco. Na verdade está ali para se esquecer de si, da história recente, aliás de todas as histórias de si! Apenas traz Ema e uma maleta de básicos. O horizonte não chegou a ver Clara, um pontinho numa rede de caminhos, vacas, moitas e muitas hortênsias, lagoas e laguinhos, fumarolas e cascatas...como poderia vê-la?! Ainda assim, houve um bom acolhimento e as duas mulheres sentiram-se bem-vindas àquele local abençoado por certo! O cocheiro relinchou c...

O Colecionador de Memórias

Era gente fina! A praceta onde morava tinha o nome do pai, ex-funcionário da Câmara de Lisboa. A irmã tinha uma loja na Avenida da Liberdade! O tio fugira para o Brasil no 25 de abril - o homem intercetara com o aparelho de rádio amador, as comunicações militares, e avisara o tio da iminente prisão. A casa do homem era modesta e cheirava, não a mofo, mas a algo inextrincável, entre ervas, fumos, mezinhas e madeiras antigas. Não usava drogas, nem tinha lareira, mas tudo tem a sua explicação.  A seguir à entrada, já no lobby, uma grande tira até ao teto expunha um desenho a carvão de uma luminosa garçonete dos loucos anos vinte. Olhava as visitas, enquanto se virava de costas, provocadora, captando e puxando o fio do olhar do observador com o seu - um atrevimento! Na mesinha da sala, descansava um quadro a óleo que estava em restauro. O homem produzia pigmentos de forma antiga, como aprendera no curso de pintura ou arquitetura...  Se ele se começasse a explicar, ou a contar a ob...

Conhece o seu Novo Vizinho?

O Sr. que vive no primeiro esquerdo, mudou-se no ano passado para a vila. Parece pacóvio. As perninhas bambas a dançar numas bermudas com palmeiras e uma camisa às riscas, combinam definitivamente mal. Pioram com o boné de beisebol com as cores da Venezuela escondendo a calvície mal assumida, à vez, com um longo penacho de cabelo ralo que o vento depressa desmente! Mas não se pense em descura: mima-se com bons cremes de rosto, faz limpezas de pele, enfim restos de hábitos de uma outra vida! Vai às compras a pé, avia-se sempre com haveres repetitivos: um frango, tapioca, umas cenouras, ginseng e um pouco mais... Encomendou lençóis na ti Filomena, na loja antiga. Não pode ir aos grandes centros e a casa pouco mais está do que vazia, ainda com caixotes por arrumar das muitas mudanças.  Não tem carro, faz a sua vida a pé ou apanha barco ou camioneta quando, raramente, lhe apetece um pequeno passeio ou visita o centro religioso do budismo japonês, ali nos centros da capital. A sua casin...

A Amiga Fotógrafa

Ela pega a natureza distraída e rouba a memória de um beijo rápido e púbere: à gaivota pensativa, que em tempo breve antecipa o voo na balaustrada da margem do rio; ao céu explosivo do fim de tarde a quem não importa o amontoado branquinho das casas chãs, que aos poucos desalumia; às nuvens cúmplices, convertidas já em vaidosas de tanta atenção, que se desdobram em ficções e gestos dramáticos. Por vezes apanha mesmo Turner, de soslaio,  esboroando a pinceladas amarelas os vermelhos que lhes fogem apressados! Há dias em que guarda as águas do rio a escorrerem sobre espelhos, ensonadas - dirigem-se ao mar relutantes como as crianças vão para a cama, contrariadas - é deixá-las adormecer no sofá e levá-las docemente ao colo. Uns e outros são tempos de fazer saudades! Em que mares, nuvens ou viventes, já anda o frescor das águas roubado pela lente?! Ou os filhos, ou os netos?!  Outros dias fixa os detalhes que ninguém vê com olho próprio: uma joaninha, uma carocha, um ligamento dos...

O Jogo das Cartas

Luísa tinha conhecido o rapaz numa festa de aniversário no início do verão. Ficou de olho nele, provocou encontros na rua e no café: bom dia, boa tarde! Na festa maior da aldeia aperaltou-se. Foi à cidade comprar roupa e sapatos. A irmã, vinda da Bélgica, ensaiou-lhe os penteados. No dia D foi só esperar por um sinal dele e fizeram par de dança. Dali em diante, para sempre! No ano seguinte casaram, apesar dela ser ainda menor! Muito jovem: só com dezasseis anos. No dia D mais um ano, exibia Luísa, na festa, o seu casamento. E foram felizes para sempre, provavelmente. Agora outra estória, que a primeira foi pequena! Lurdes conhecera o rapaz há um ano atrás. Como era muito nova, nem sabia o que lhe estava a acontecer. Um dia, depois de estar a conversar com ele, pelos seus treze anos, olhou para o peito, viu o colar que a mãe lhe comprara feito de missanga, bonito, e que simbolizava o que era oficial: era já uma mulherzinha! Olhou para o colar e no mesmo relance viu o peito já desenvolvi...

Gratidão

Imagem
Podia ter sido que o pai fosse para a guerra do ultramar. E não voltasse! Ou voltasse perturbado! Ou eu o conhecesse, ali além, em cova funda! Eu, possessa, perseguiria o porquê! A mãe?! Como seria?! O mano não existiria?! Oh! A minha vida foi decidida no lugar da fila para a embarcação para além (mar), ou o além! Aleluia! Ele ficou por cá! Não foi um mar de rosas... Outras partidas pariram a causalidade de se ser assim ou assado. Sortes e azares! Foi assim! E cá está ainda! Ela, a que o amou e me pariu, partiu! Foi ela que se apressou, cansada! Talvez não tenha tido direito de opinião, como era costume, mas gosto de pensar, que se lhe fora dado escolher, entre as hipóteses claras, ela decidiria o que foi decidido sem ela! E ele por cá ainda está! Não embarcou para o ultramar nem para lá do além de Terra e Mar! E o que mais me mima na vida, é que o pimpolho do meu irmão repimpolhou e somos muitos, ou poucos mas mais, e oxalá tão bons ou melhores que os que já não estão e os que estão a...

A Lua.

O luar penetra pela minha janela. Espreito uma Lua majestosa a sorrir para mim. Marota, faz-me viajar no tempo... A Lua São uivos de lobos?  Não!  São estórias do avô pirilampos  piares nocturnos  São doces momentos Sins da vida! Olha a Lua! Sombras nossas avô!  Tão grandes e magras  que são,  a lombrigar pelo chão!  Luar de Agosto dá-lhe no gosto... e outros ditos,  diz o avô sobre a Lua. E depois, mais velhos já sem o avô  mas ainda, a Lua Há festa lá além.  Vamos? Com a ânsia de dançar e de amar também ! Por ora, tagarelas, caminhamos estrada afora. A Lua antecipa a dança na trança de sombra que de nós faz.  E ao voltar  faz luar frio.  A noite é velha! Romances nasceram? Em amanhãs saberás da flor. Agora, no regresso, estamos cansados, ébrios de sono e de sonhos de amor. Os caminhos sabem o que partilhámos ao Luar!

Estar Presente.

Inspirar o agora até eclodir em miríades de bolas de sabão, guardiãs de arcos-íris e miosótis.  Beber elixires alheios até a profusão dos sentidos diluir a ânsia dos porquês.   Mimetizar os animais nos seus afazeres primevos, sem necessidades supérfluas: o sol para a alegria, a lua para velar, os rios para fluir, os montes para ampliar a noite.  Tudo está certo, se a azáfama da vida e do Eu repousam do Tempo.

Baby Old John

Sir John é um britânico de quase setenta anos, a viver há uma década em Portugal. Como bom British que é, mal arranha a língua local, honrando o famoso tique imperial! Vive numa comunidade com vários expats do seu país, o qual visita frequentemente. As filhas e a irmã não o deixam só por muito tempo, deslocando-se de Inglaterra para visitá-lo!  A vida de John é uma alegria! Tem uma casa de grandes dimensões ao lado da piscina privativa e uma vista desafogada para a vila portuguesa. Participa em diversas benfeitorias, desde festas populares ou culturais locais a eventos de caridade da sua comunidade nacional. Apresenta um desvelo na comunicação com populares, em que se faz sempre de desentendido desse "difícil português". Pratica exaustivamente atividade física no ginásio ou na sua bicicleta artilhada, contabilizando quilómetros às dezenas diariamente e ainda faz gáudio em apresentar as suas motorizadas de coleção, deixando babados os homens locais. Como é bom conviva, abre a ...

O Amigo

Quando era adolescente tinha alguns grupos na aldeia, no verão. Comecei a encontrar-me com alguma frequência com um rapaz um ou dois anos mais novo do que eu num dos cafés centrais da época. Conversávamos já não sei sobre o quê e sentíamos tédio, porque quase nada acontecia naquela terra que preenchesse o nosso desejo de novidades. Lembro-me de partir paus de fósforo compulsivamente, talvez porque ele fumasse, o meu amigo. Se calhar Português Suave, digo a sorrir! Ele era de uma aldeia perto, mas distante o suficiente para se ter de viajar de veículo motorizado. Havia quem o fizesse também de bicicleta, mas era raro, que a mocidade andava cansada! Ele às vezes dava-me boleia para cá e para lá e nunca ninguém me denunciou em casa - parecia um milagre! A situação mostrou-me como a vida dos rapazes era incomparavelmente mais tranquila que a das raparigas e isso era indecente! Lembro de uma cena caricata. Às tantas da conversa sobre coisa nenhuma ou o quotidiano de um adolescente no Painho...

Suse - In Intermundos

Imagem
Viu-a desde a esquina: a sua cabeleira fulva com pequenas labaredas a desprenderem-se de uma auréola, em espirais. Era uma deusa para ele! Estremeceu por toda a raiz axial do corpo, sentiu a ascensão pelas chacras, um sabor acre a depositar-se na boca, a garganta urgiu pela saliva, a respiração adensou...antecipou-a como um relâmpago dispõe do trovão - Suse! Ela, imóvel, olhava-o pelo canto do olho - o rosto opunha-se retorcendo-se no sentido oposto. Ele avançava felino com o passo certo em ritmo uniforme, ligeiramente acelerado...já lhe lia os lábios em flor, entreabertos ao espanto e às memórias, o olhar pleno de especiarias, a valsa que se avizinhava aos corpos, os beijos fustigados de vento em rimas e ritmos pejados de químicos de amar, e o desenho em esboço do sorriso puro, os fios do entreolhar dele e dela a apegar sem liberdade; ouve o bafo rítmico e sente o marejar ondulante do sangue quente nas veias e atira-se-lhe para a curva do colo; descai a cabeça sob o peso da saudade a ...

O mundo liliputiano do rádio

O rádio era o centro da casa. Eu tinha lugar, se não cativo, pelo menos frequente, com o ouvido esquerdo encostado à rede emissora e as mãos sempre prontas para o controlo dos botões. O olhar não saía da faixa de vidro iluminada. O rádio a válvulas oferecia-nos, as canções da moda portuguesa, que nos inspiravam a organizar festivais - hoje diríamos "the voice" - a mim e ao meu irmão, no famoso corredor da casa, que o era da fama também, com os microfones improvisados e muitos maneirismos... O rádio era um atractor perto da hora de almoço, para o mulherio. Não sei porquê, mas fazíamos uma meia lua em torno do objeto de adoração, quando davam as radionovelas, o Sr de Saint Maurice ...,;  Simplesmente Maria partiu todos os corações! Era imperdível e alimentava depois as conversas empáticas com a vizinhança.  Eu punha-me muito encostadinha à rede emissora, a olhar para o vidro iluminado onde corria um filamento branco que sintonizava manualmente a onda. Qual onda?! eu não via ond...

O Mundo por um Buraco de Alfinete

A nossa casa tinha um corredor finalizado por uma porta que dava para a rua, onde estava encastrada uma caixa de correio. Não era completamente estanque, pelo que passavam uns finos raios de sol ali pela manhãzinha. Como não era muito usada essa parte do corredor ou essa porta, frequentemente eu e o meu irmão e às vezes algum amigo brincávamos nessa zona os nossos "floor games" honrados no livro de H. G. Wells, o autor da Guerra dos Mundos, publicados na transição para o séc xx. Era no chão que brincávamos e como vêem, era altamente! Um dia reparei que na parede do corredor passavam umas imagens e que não estava apenas a ver raios de sol, mas literalmente o bulício da rua. Assim que pude, combinei com o meu irmão ele ir movimentar-se na rua, no lado de fora da porta, para testar a coisa. Efetivamente estávamos a assistir a cinema em direto, só que a imagem estava invertida. Fiquei muito perplexa. Partilhei com os outros miúdos, eles acharam pouca piada e esqueceram rapidament...

Contemplação

Devemos estar em 1976. Estou sozinha. A tarde faz a despedida, mas ainda está quente. É outubro. A vindima deste local foi feita e as aulas estão quase a começar em Lisboa. Não me apetece ir! Agora que me habituei a estes cheiros e modos de vida, não me apetece ir. Sinto dor quando entro em Lisboa, antecipo-a por Alhandra, a poluição, o calor artificial, o predomínio vertical... Aqui, hoje, fico de pé, estanque, a mirar as copas dos choupeiros alinhados com o rio. O sol descai devagar e as folhinhas abundantes tremelicam. Posso ouvi-las como pequenos sininhos em árvore de Natal; espreitar os ninhos abandonados sem saber dos pássaros que aí viveram; seguir a lagarta que se estatelou no chão e riu, numa cama fofa de folhas amarelas - quem me dera!  As copas das árvores assim altas e trémulas desafiam as linhas suaves do horizonte como a da estrada oficial que desagua na curva mais importante da minha vida e depois segue viagem por terrinhas até se adentrar na cidade maior, as Caldas,...