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A mostrar mensagens de julho, 2021

Advogada? Eu?!.

«Do que as amigas de infância se lembram!» - Pensava eu quando já adulta ao reencontrar no autocarro  a amiga de brincadeiras Maria do Rosário e ela me perguntava se eu sempre tinha seguido para advogada. Fiquei perplexa e neguei alguma vez ter tido esse desejo. Ela estava também segura e deixou-me convencida: tu querias ir para advogada, dizia ela, para defender as pessoas das injustiças! Ora, tinha transformado esse o objetivo no de ajudar as pessoas a lidar com os problemas e desafios da vida, mas vendo bem, talvez tenha ficado aquela chama! Não acham?! Tirando as artes que me apaixonavam, mas que por birra entre pai e filha não cheguei a frequentar (eu queria pintura e ele arquitetura), fiquei a balançar ciências e línguas e escolhi as primeiras porque considerei mais abrangentes. Logo ali adiantei a hipótese de psicologia. Pensei: o mundo vai precisar sempre de entender as pessoas, portanto tem futuro e é fascinante! Pelo meio apaixonei-me por matemática, física, introdução à ...

O Mundo era Belo!

Quando eu era pequena e brincava com as minhas amigas e às vezes com meninos, na rua, pelos recantos, às casinhas ou aos jogos tradicionais, o mundo resumia-se àquela pequena bolha e nada era feio, nem o que depois aparecia degradado nas fotos a preto e branco, nem os nossos penteados, às vezes com uma madeixa espetada, eram problema, nem as roupas que só sabiam ser mais bonitas ou normais! Apenas as crianças sujas e descalças sairiam do padrão. Os pais tinham as profissões que tinham, só os carros, a uma dada altura começaram a ser minuciosamente avaliados pelos adultos, mas nós não ligávamos. O que era importante era o parentesco familiar e a distância a que se vivia - praticável ou não para um encontro! De resto, estava tudo bem! Eram raros os conflitos e a vida decorria com simplicidade e alegria no tempo livre, que era muito! Mais tarde, com a ida para lugares distantes, para os estudos pós primários é que o mundo começou a complicar-se e com histórias de arrepiar, perigos por tod...

Antes do Pai Natal

Antes do pai Natal chegar ao meu conhecimento, só havia o menino Jesus. Era ele que descia pela chaminé do fogão, tão estreitinha - só lá caberia o pequeno menino Jesus do presépio, mais ou menos do tamanho do da Igreja. Muito mais tarde, já eu grandinha, é que apareceu o rechonchudo velhote de barba de algodão e vestes vermelhas, que obviamente nunca iria passar por aquele estreito, só se voasse como o escuro papão, sobre os telhados, e fizesse descer os presentes por uma corda. A verdade é que nessa altura já não importava a mentira contada às crianças, pois elas já sabiam do que se tratava. E aquele senhor nunca foi credível - ninguém era assim tão obeso! O menino Jesus era então o protagonista do Natal. Muito seletivo, exigia cartas explicativas de uma lista curta e depois caprichava, quase sempre rejeitava os pedidos ou transferia para algo equivalente, na opinião dele, pois eu discordava. Onde já se viu trocar um chorão por uma boneca toda de plástico, até o cabelo?! Como se pode...

Saudades de Alexandria

*Ah, aquele lugar, no tempo anterior à Segunda Grande Guerra!* Saudades absurdas de ti Alexandria! Vim de navio, aproveitei uma linha especial de verão com a desculpa de poder estar perto de Durrell na inauguração da livraria francesa L' Hirondelle e com sorte revejo alguns dos meus conhecidos. Apanho o elétrico na avenida e delicio-me com as vistas da janela - ai que sensação poderosa, química -, ver esta azáfama cosmopolita do lugar do coração. Não amo mais nenhum com esta intensidade. É uma pertença mútua. Sinto-me em casa! O chiar dos freios nos carris é a abertura de uma qualquer ópera por criar. Senta-se ao meu lado uma beldade exótica, longos cabelos negros espelhados, com um peso de molde caído nos ombros, revelando um ziguezague nas frestas das mechas angulosas, os lábios carnudos de África, a luz sombria do khol nos olhos penetrantes, com o arrebitado traço de uma árabe ou talvez seja judia. Perfumada! Um encanto que me faz esquecer de assinalar na campainha a saída, mas ...

Na Rede - Dom Juanito

Um homem, se não se cuida, não sai incólume desta experiência! A sequência de mulheres, os encontros no café, que já se repete por economia mental, o almoço que se oferece em casa também com lista de menu restrita ao que melhor sabe fazer, o mesmo lugar na mesa para elas, como se fora um festival...dar um tom prático e quotidiano à refeição, sem aparato, resguardar todo o sinal romântico, poupar-se de compromissos e memórias espúrias para o futuro, evitar conversas pormenorizadas que lhes dêem identidade - enfim, não vou repetir! Tudo por poupança e alguma estratégia. Alcançar rapidamente o objetivo a pouco mais de um palmo de pujança - oxalá venha ela! Avisar a candidata de possíveis ou prováveis adaptações de percurso no enlace íntimo. Tudo configurado: a sequência, o palavreado. No entanto, as primeiras horas serão mais gerais, fala-se de ambições mais sonhadoras, de finalidades, como os utópicos descarados nos governos. Depois é desgarrar o objetivo como eles costumam fazer. Tudo c...

Horizonte Sensual

Da chaise longue mira o horizonte rente ao nariz e à unha do pé pintada em vermelho carmim e vê estender-se a coluna de bruma azul a fundir céu e mar. Maria declina a cabeça, ainda ensonada, para o peito iluminado de bronzeador e sol da manhã. No horizonte, agora, um ponto e vírgula navega tão longe ao lado do copo de sumo de fruta silvestre. Aparecem aromas florais e um pontilhar sonoro de pássaros que se juntam ao langor das sombras estiradas na relva húmida - uma língua comprida a moldar-se ao relevo dos arbustos -, e é nesse preciso momento que acorda nas mãos dele, delicadamente convocando os tendões e músculos do pescoço para a combustão lenta da líbido. Permanece assim, longamente, enquanto a consciência dela parte em devaneio e os lábios provam o sal da maresia e uma brisa leve escorre pelas feições e deleita-se no véu-vestido a acariciar as ondas do corpo. Como as flores de longas pétalas e a protuberância dos estames, anuncia-se o ato fatal de misturar temperos férteis...Ah ...

Uma Casa de Férias

A casa de férias foi outrora de uma família. A veraneante sabe de dramas passados, mas tal não lhe desperta nenhum sentimento negativo. Procura algum sinal plasmado na mobília, em recantos, objetos, cheiros, mas só sente a vontade da dona de torná-la bonita, confortável, uma extensão de si mesma e da sua maternidade! Se sofreu - ora, sabe-se que sim!- levou essa dor consigo, porque aqui só deixou tranquilidade, acolhimento.  A casa tem personalidade e os objetos que ficaram da mudança - sem glória, na sua anomia -, não deixam de compor um todo que a acalma, sem que nada se destaque. Compacta, a casa recebe-a num abraço caloroso sem afetos negociáveis que a prendam a reciprocidades... Diria que ali jazem as mães do mundo com o seu amor incondicional e ela é a sua filha felizarda! O sino da Igreja próxima pontua o tempo cortado em fatias finas; os bêbados da taberna da esquina eternizam cada ano no seguinte - são sempre iguais nas suas alucinadas conversas: murmúrios, espasmos, decla...

A Escritora Genial

As palavras existem naquela sequência por ela inventada que é única e ela sabe-o!  As sensações que me alavancam essas palavras, fujo de algumas, por me desventrarem e verterem o desespero em sangrar lento e eu não posso dar-lhes esse poder!  Protejo-me delas, tão potentes nas minhas entranhas. Não posso deixá-las entrar e remexer o corpo, trocar os químicos, mudar o sítio dos órgãos, desorganizar o bem-estar dormente que me proteje do real cru!  A escritora que me perdoe! Capitulo de vergonha!  Mas ela, facínora, corta, esfrangalha, lima onde dói! Ai! Enrola as palavras numa confusão que a mente não tem tempo de alisar e vai um sentido já a fluir e outro ainda empatado lá atrás - espera lá!- e invade-me de mais fragmentos de sensações, tanto acumular de pequenas partes sem todo à vista! Uma aflição! Ela não acaba o trabalho, abandona-me num estado incompleto!  Cada palavra é um borrão de cor entregue à influência de outras cores em enxurrada e eu para dar algum...

A Praia de antes e de agora.

A memória traz-lhe uma moleza moldada em peso na areia e carícias de mãos namoradeiras, mas não tem a certeza dessa verdade! Talvez fossem alguns segundos, ou só uma vez! E na infância, que na praia se prolongou até aos quarentas, o jogo, o grupo, a brincadeira, a boa disposição, os lanches, a organização da agenda da sombra e do sol, os rituais: do chapéu, da água de beber, da ida ao mar...risos, risos! Mas também não está absolutamente certa dessa energia! Agora a praia é outra, rápida, solitária, o mais possível silenciosa, sem ardis ou ardores de pele, sem namoros, sem tensões e negociações, com o fim no bar, um petisco a gosto, a bebida escolhida, um gelado até - às vezes -, vulgar, mas a fazer ponte com o passado, onde nada mais joga a favor da memória!  Há duas praias por certo, a do passado e a de agora. Inconfundíveis! O mar é mais calmo, menos aventuroso, a areia tem uma temperatura a jeito, sem escaldar, sem adornar o langor nem a líbido. Tudo calculado, agora! Embora, d...

A Rapariga Que se Perdeu a si Mesma

A rapariga sentia-se confusa, cansada de uma semana de insónia. Acordava e adormecia, mas não descansava. Tinha pesadelos que lhe pareciam reais de abdução para uma nave extra-terrestre, onde ficava deitada a ver os seres translúcidos de tamanho pouco maior que humano a injetá-la com um líquido verde seiva e ela sentia posteriormente uma lassidão progressiva que a imobilizava e lhe retirava os sentidos até se apagar a consciência! Isso acontecia recursivamente, já não sabia como se esconder, pois era sempre apanhada, geralmente em sua casa, ali mesmo da cama. Elevavam-na, faziam-na passar o teto, as paredes, já meia dormente e perdida dos sentidos, até dar conta de si num espaço de luz néon azul esverdeado, num silêncio absurdo, tratada como uma cobaia. Depois acordaria na sua cama, cansada, muito cansada! Queria pedir ajuda, mas já calculava que iria ser pouco entendida! Tinha cuidado!  Ousou contar à amiga que lhe tinha dado o livro e até pressionado a leitura, após ela lhe ter c...

Da Profissão - espíritos.

Quando a psicóloga conversou com o rapaz lingrinhas sensibilizando-o para não fazer bullying com um colega obeso, ele, empertigado perguntou-lhe retoricamente: sabe se eu não tenho também problemas, até maiores do que esses?! e rematou " mesmo que tivesse, nunca lhos contaria!" e a psicóloga, confiante concordou, que falariam doutras coisas, não daqueles problemas! E depois em sessões seguintes falaram cada vez mais dos problemas de que não se podia falar, assim disfarçadamente, até que o rapaz assumiu e contou pormenorizadamente o que se passava com ele: falta de dinheiro, violência doméstica e o que considerava ser, a notícia falsa da morte do pai, na qual não acreditava! E a mãe foi chamada e contou uma história que só importa nesta parte: punha a mesa, sentavam-se e ela dizia "agora façam de conta que já comeram" e levantavam-se! Mas o rapaz não estava incluído. Houvesse ou não comida ele estava proibido pelo padrasto de se sentar com ele à mesa, pelo que a mãe ...

Da Profissão - ser nada!.

O rapaz fora-lhe apresentado como tendo "qualquer problema, parecia atrasado!". Viera da Guiné para o 12 ano, até que decidiram reposicioná-lo no 10 ano, e posteriormente num curso tecnológico, mas não evoluía na aprendizagem em nenhum dos lugares. Quando conversou com o rapaz não lhe detectou dificuldades no diálogo, mas também não adiantava grande coisa: falava de banalidades...entretanto chegou-lhe ao gabinete o irmão, de 14 anos, por problemas de comportamento, também vindo há pouco da Guiné e havia vários outros irmãos na escola.  Quando se lhe propôs, ao mais velho, formação num Centro de Formação Profissional e se indicou a documentação necessária, o rapaz começou a chorar e a dizer que não podia ir porque não existia, não era ninguém, valia menos que um objeto! E quis sair, sem nada mais falar. Mas pouco tempo depois, o mais novo avisava que estava de viagem marcada para ir viver para a Suécia com familiares e que tinha 17 anos. Face à evidente falsificação, a psicólo...

Da profissão - tempos imberbes.

Há muitos anos atrás, ainda ela tinha apenas a especialidade inicial que lhe permitira desenvolver as primeiras funções de conselheira de orientação escolar e profissional e estava em transição para as de psicóloga educacional, portanto ainda sem a formação em clínica, a não ser aquelas aulas no hospital em que os psiquiatras pareciam divertir-se a mostrar aos futuros psicólogos situações limite, e ela chocada e sem gosto por emoções gratuitas, faltava a algumas, que não faziam falta, pelo que via acontecer naquelas a que ia! e, dizíamos, ela ainda estava numa fase imberbe das novas funções, que foram sempre sendo acrescidas, primeiro técnica e cientificamente e depois com pouco mais do que burocracia e gestão...quando viu, na escola, um rapazinho de pequena estatura a correr atrás das raparigas para lhes tocar os cabelos. E elas fugiam e riam!... O seu fácies denunciava, o que lhe pareceu uma séria deficiência intelectual, mais do que isso, era quase simiesco. Faltavam alguns dentes e...

O Jantar Romântico

Ela foi apanhada de surpresa. Era ainda um primeiro encontro. Tinham combinado ir jantar. Poucas horas antes ele informa que tem o peixe a descongelar. Ela não quis apresentar-se como frágil e concedeu na alteração, pelo menos da sua intenção! Afinal era mulher feita! Quando chegou foi recebida com simpatia! Após uns sorrisos francos de satisfação entre ambos e a apresentação dos cantos da casa, foi instalada na sala por entre fragâncias agradáveis de uma vela. A luz indireta e ténue, que ela escolheu das alternativas que lhe propôs, combinava bem com o espaço cuidado e minimalista, com alguns toques de personalização numas fotos dos filhos e memórias de viagens, alguns detalhes da sua coleção que habita outro local da casa...e ele fora cozinhar deixando-a num banho musical de extremo bom gosto, que pensando bem, ele explorara na conversa anterior... Quando a refeição ficou pronta, com aromas, qualidade e detalhes interessantes, ele orientou-a para a mesa, puxou-lhe a cadeira a sorrir ...

A Impotência

Eu sou a impotência do homem e trago algumas histórias. A primeira é a do Zé João. Eu fui chegando devagarinho, a ponto de ele selecionar uma gama de mulheres, preterindo outras. Não vou dizer mais nada sobre este assunto particular para não ferir susceptibilidades, mas reduziu as hipóteses a duas pequenas, por minha causa. Ainda hesitou um pouco por outra, pela mesma idade do Zé João, mas de um estilo já tão conhecido! Quantas mulheres assim namorara ou tinham vivido com ele?! Decidiu-se, por fim, por uma das duas. Mais nova do que ele, aderiu à experiência, de vivência em casal, como ele gostava. A moça tentou alguns negócios, como adquirir uma nova casa paga por ele, só que o Zé já tinha más experiências e não era parvo, apesar de embeiçado, e dela parecer dar conta do recado - de mim, diga-se! Era uma simulação quase perfeita, até que ela precisou duns trocos para umas obras de monta lá na sua terra e ele contribuiu, porque a tarefa se dificultara após um AVC do Zé. Mas depois houv...

O Fumador - série Mariana

Sabes Mariana, aquele gesto de levar a mão aos lábios a aspirar um beijo que é depois largado no ar para seguir viagem até se espetar numa bochecha ou noutro lado, atrevido ou desastrado?! É esse gesto, Mariana, que lança o fumador para o campo afortunado dos afetos, espalhados a quem os apanha. Faz biquinho, aspira, depois de aproximar da boca, a mão insuspeita, e arredonda o gesto ao retirá-la, enquanto os fios caprichados de fumo, vão de modo lasso, em redemoinhos e parafusos até se espraiarem ou chegarem, como os beijos...mas mais reais do que eles! O olhar do fumador, se reparares, é bem diferente do beijoqueiro; neste caso, expressa-se afetado e circunspecto, mostrando a imensa classe dos deuses do Olimpo! O cigarro é um sexto dedo, que se lhe espeta distinto para o céu, como um ponteiro sideral e permite ao fumador manter em posição curiosa, suspensa no ar, a mão que doutro modo  levaria ao bolso ou a qualquer berloque. E a graça que tem, deixar pendurado o cigarro a apontar...

O Palacete

O palacete dos avós Bernardes fica junto à estrada militar, já à saída da capital. Na época áurea, quando o autocarro inglês da Carris passava, no piso mais alto, os passageiros levantavam-se com curiosidade para espreitar alguma extravagância ou novidade, como a grande piscina, os carros de gama alta às vezes ali estacionados, as belas e sofisticadas mulheres, uma festa, ou o que quer que fosse, certamente diferente daquilo de que eram feitos os seus dias, excepto os apresentadores da rádio, esses partilhados pelos dois mundos, ao vivo ou em ondas hertzianas. Mas isso era o que eu ouvia dizer, sobre o passado. Na adolescência, a minha mãe ia às quintas-feiras e sábados para o picadeiro e apanhava o autocarro na paragem anterior, por pudor e privacidade, mas sobretudo para ter tempo de subir ao piso de cima e, também ela, entre o povo, se erguer do banco quando o autocarro passava pelos muros da sua casa, para saber o que eles queriam ver e sempre se surpreendia ao ouvir os sussurros e...