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A mostrar mensagens de novembro, 2021

Bom Dia Mário

A vida revolveu-se desde aquela época em que nos vimos pela primeira e depois pela última vez. A quarentena. Os telefonemas ambíguos.   No dia 29 de março, creio, um longo discurso sobre os Whigs e o século XIX em Inglaterra adiaram da língua o sabor a veneno. Era o quê, que me dizias?! Era sim, não, à vez, talvez? Que confusão! Aflita, vogava em tempos possíveis e intermitentes na tua estória dos Whigs. Nos intervalos, distraia-me com o aperto no peito e as linhas de pensamento que faziam perguntas e saltavam a resposta, e depois retomava a tua estória mais à frente, da qual só memorizei: os Whigs e a profusão de sentidos do liberalismo. Naquele momento, uma pedra tumular grave e anónima levitou sobre mim e levou dois anos a cair até esmagar por inteiro memórias doces ou expetativas de amor fraterno (ou eterno?!). Qualquer coisa se esvaiu da mente e ma deixou menos capaz, porque o que nos completa, nos faz ser, e o que nos roubam de dentro, nos desfaz. Foi no dia 29, se a memória ...

No Special Feeling

Consultei as minhas entranhas e não estremeci! Eu sei que falámos noite e dia, tivemos encontros de dezenas de horas entre jardins e restaurantes, demos abraços fraternos, ternos e enamorados. Sei que gostaste do meu toque e dos beijos caprichados: sei que sim! Desculpa, então, mas hoje consultei-me e não estava envolto em magia, nem o futuro se tingia de ti. Não entranhei as imagens que guardava de nós nos enleios melífluos do amor. E mais, não me fazia impressão especial imaginar-me a escrever-te umas linhas de adeus; não sentia saudades antecipadas; não me escorriam desejos pelas mãos ao sabor das tuas curvas; nada me fazia pular o órgão das chacras, sentir bêbado do teu néctar, aflorar aos lábios as pétalas dos teus ou sentir pelo avesso o abraço a mim próprio. Nada.    [Nenhum sentimento especial contrabalançava a excitação de ser visitado pela sua concorrente, que está aí a chegar para a próxima semana - vem a uma exibição musical e, depois, vamos finalmente conhecermo-n...

Vicky Martens

Vicky, bela e esguia, é escorregadia do cabelo às pontas de bailarina, a dançar plim-plim na caixinha de música; o tutu a fazer círculos titubeantes e ela de sorriso doce e terno para mim. Eu de cinco anos, em bicos de pés, a espreitá-la à altura da cómoda e a rir baixinho porque o coelho branco, embevecido com a Vicky, se assustou com a sua própria imagem no espelho, saltou e partiu a jarra da madrinha, que eu detestava. Entretanto, a Vicky acaba a corda e fica elegante e calma à espera que eu coma a sopa e cresça: ela talvez aos tombos no sótão e eu na vida. Mas juro que te resgatarei para a minha coleção de bonecos de sandplay, quando for grande e terapeuta, Vicky Martens. E quando eu for roteirista da Netflix, juro, Vicky Martens, que serás a heroína da minha novela debut, com o teu nome por título e o tema, deixa pensar: serás uma bailarina famosa, vamp, de partir os corações e não te decidirás por nenhum dos dois amantes; consequentes atribulações acontecerão na tua vida, assédio...

Avô

Ele sentava-se na arca medieval cheia de iguarias. A arca tinha patine. A fala dele também. Ele gostava da Dona Constança e da Dona Urraca. Eu, sentada de pernas cruzadas nas tábuas do chão coradas de anilina, via as rosáceas vivas das bochechas com os botões dos olhos no topo, os dentes a mastigar as palavras e a língua grossa a molhá-las, e entrava na história dele sem me preocupar com nada, porque era amor, do que ele falava, e eu também o amava. Avô!

Línguas de Fogo

O homem ateou um fogo na fazenda dele. Era a um quilómetro de distância. Uma queimada. Era outono. Subimos à placa da casa em construção para ver melhor. Fervilharam as opiniões, avisadas pela televisão: nada de fogos! Imaginei, à velocidade do eletrão, as mais escabrosas evoluções do caso - eu e os dramatizadores. Afinal não era um descaso. O homem sabia o que estava a fazer. Seguia as regras. Deu filhos e estes deram-lhe netos e aí está a evolução. As línguas de fogo e as da especulação, fizeram cinza. Sei lá quem foram. Tontos!

Necessidade

Gostava de falar agora com uma pessoa...que não fosse especial, nem normal. De preferência, não fosse muito especial ou muito normal, nem se sentisse desses modos. Já conheci tanta gente tão especial ou normal e fiquei tão plena, que agora tal não me faz mais falta; aliás, não tenho espaço na cabeça, no coração, ou na alma - não sei bem como dizer; sobra um pequeno vão, debaixo de uma escada, para me esconder a contar segredos pequenos, comer pipocas e pevides contadas também, desejando sobrar fome por saciar e um pouco de sede, e rir por reflexo dos disparates, pequenitos, sem dramas; medir a palma das mãos uma pela outra - a minha e a sua -, talvez com uma palmadita e um "ó pá!" E depois irmos embora para qualquer lado sem histórias para contar, exceto esta, parva, aqui deixada.

Gentes da Serra

A serpente da estrada da serra causa-lhe náuseas. Vai apertada entre as crianças e os adolescentes no banco de trás do automóvel, provavelmente por causa das suas dimensões: magra, baixa, tímida. A ida foi-lhe apresentada como um ritual: conhecer os futuros sogros. Ela só conhece algumas cidades e um tetra de aldeias aconchegadas umas às outras. Vai apreensiva, com o estômago a querer saltar fora. Nem tem tempo de brincar com o olhar na folhagem a recuperar o território furtado pela estrada. Chegam, o coração salta dentro de uma caixa onde é abafado, ela põe-se em piloto automático: polido, educado, civilizado, mais urbano do que era na realidade, as mãos suavam nos bolsos, o frio esfaqueava a garganta, os pés eram de pedra na forma do sapato impróprio para o clima, e tinha fome, que acabou por confessar, fragilizando a figura empalhada que estava a fazer. Rapidamente, os convivas encetaram uma conversa em rede das coisas deles - tanto por falar estando naquelas distâncias, a maior sen...

O professor de música

Ela e o amigo professor andavam a dar música um ao outro. Não era desafinada, até já se lhe sentira a harmonia, mas de baixo volume e suave impacto, e iam já numa, duas, três ou quatro vezes de encontros, ou até mais, discretamente como se fora uma amizade. Em matéria de sair à noite, ele era muito fixo no local de predileção: uma rua no Cais do Sodré, cheia de amigos das orquestras e respetivos familiares a lançar negócios de bar e restauração. E aí se acomodavam junto à vitrine da antiga loja de roupa ou de meninas, apertando os pratos em cima de um lavatório vintage convertido em mesa, no restaurante sem objetos repetidos - uma moderna reutilização preceituada -, e divertiam-se, assim modestamente, mas com muita tranquilidade. Umas noites a rua enchia até ao excesso e noutras vazava, como as marés. Ela ainda se lembrava das trupes de marinheiros que por ali vogavam, junto com os clientes das discotecas vadias, e uns grupos de curiosos, onde raras vezes ela também se inscrevia, e, cl...

Fui Levado

Fui levado à aldeia de xisto Vindo de outra, caiada Senti saudade da minha gente A solidão violou-me A música ofendeu-me Os falares eram ruído Senti falta da minha mãe e da sua tradução do mundo Eu que me julgava independente Gatinhei Tive sede como no deserto Vislumbre de ser enjeitado Podia despontar-me a morte ali A mim, desconhecido soldado.

A rua dos silêncios

A Rua Berta tem quatro casas, quatro casos. Os vizinhos da esquerda zangaram-se com os do meio e os da direita também. Os da frente são superficiais e neutros. Portanto, a rua tem silêncios em vez de bons-dias. Tem esgares e cortinas com vultos fugidios. Solidões pesadas. Esperas crepusculares pela morada dos ciprestes. Os sons de viver, que se ouvem às vezes, parecem intrusões na pele. Não são naturais. Antigamente, os antepassados daqueles viziinhos eram amigos! Amigos! Ainda me lembro dos sorrisos sinceros e das boas palavras.

Ora Essa, Hem, João Maria?!

Penso que não vou mais falar contigo João Maria. Sempre a depressão e a má disposição a alternar com a felicidade de estar com as tuas meninas; outras vezes,  afundas em silêncios que apenas querem dizer que andas a divertir-se à grande com tudo a que achas ter direito, e não é pouco! A esposa, separada de ti há décadas, deixa-te morar na vivenda, independente; tens bons espaços e até animais, um cão, dois, às vezes mais uns gatos...uma oficina para os hobbies, salas específicas e um quarto quentíssimo de histórias hardcore; o quarto de banho anexo, para as ablações consequentes, e ainda, vizinhos culturalmente interessantes. E apesar do sossego da zona estás a dois pulinhos do centro qb urbano, turístico até...e não digo mais para não te comprometer, mas só acrescentar as boas vistas para o rio e Lisboa ao longe, e as passeatas na lagoa, na cascata, na barragem e sempre as meninas como suplemento afetivo quando faltar a namorada com casa de férias, no Meco ou em Meca e uma santa, ...

Aquelas Mulheres de Portugal

Aquelas mulheres de Portugal, que eram as nossas avós nos anos sessenta e setenta e viviam na aldeia, tinham uma fibra de se lhes tirar o chapéu: tisnadas e calejadas pela vida, possuíam uma figura de que guardamos memória.  Usavam lenço na cabeça em cores sóbrias, o cabelo perfeitamente acachapado e algumas mantinham-no escuro ou madeixado, talvez porque não fossem tão idosas assim, mas chamavam-se velhas a si mesmas e eram as "Ti" qualquer coisa - nomes antigos e deliciosos como as suas comidas. Os olhinhos iam ficando pequenos e baços, com auréolas amareladas por lente e encolhiam para dentro das órbitas enrugando as pálpebras em círculos. E depois, as marcas do riso ou do espanto distribuíam-se-lhes nos pés-de-galinha dos olhos ou no til em bis da testa. Os tiles, como acentuação do longo histórico de pareceres já dados, a pedido ou espontâneos e os pés de galinha como vingança daquelas a quem dobraram o pescoço e enviaram para o lado de lá, garantindo o sustento da famíl...

Dias de Costura na Menina Antónia

Linhas em carrinhos, carretos da máquina Singer; alinhavar, chulear, cerzir, ponto atrás, remates, na fazenda, chita, jérsei, seda ou sarja, às vezes até cambraia, musseline ou organdi; as saias em godés, em plissado, com prega ou macho, travadas ou evasé. A menina Antónia fica à janela do rés-do-chão de sua casa, de onde emana as orientações - que ela assumiu a chefia da equipa -, e, na rua, rente à janela, sentadas em pequeníssimos bancos rasos e duros, assentam as mulheres as saias travadas de onde revelam as pernas torneadas que esmorecem nos chinelos com grossos dedos e unhas largas exclamando nudez vigorosa. As linhas dos alinhavos desmanchados são dependuradas no ombro; os dentes cortam os nós; a língua lambe o dedo para fazer outros, num faz e desmancha marcado pela saliva construtora e pelos caninos tesoura. A visão ótima das mulheres jovens guia a mão certeira com a ponta da linha lambida na passagem estreita do buraco da agulha. Agulhas com cus: grandes ou pequenos, e elas a...

O peixe terrestre - um sonho

O peixe vermelho e gordo dava-se fora de água, tinha-se adaptado e conseguia mesmo fazer uma correria desengonçada com a parte traseira, e saltava como um cão o faz, de alegria, até à mão do dono. Os olhos já não eram simétricos, por esforço de adaptação, ficara com um mais atrás do que o outro. Apesar de estranho, era um prodígio! O gato era meigo e cheio de feridas no dorso. Aguentava os tratamentos sem protestar. Até um ratinho feloso foi adotado, apesar do seu pêlo anunciar alguma doença, mas não conseguiu vedar-lhe a entrada, apesar do nojo de imaginá-lo escondido entre os lençóis da cama. O gato, a que se juntou uma gata velha, eram aliás grandes amigos do rato e do peixe.

Um Gato de Morna

O homem era um enfezado! Erguia o queixo e punha uma expressão séria. Se abria a boca, aparecia um dente incisivo que era metade do outro, exibindo-se um escuro retângulo no desnível, negro e decerto húmido, mas logo os lábios carnudos (sim senhor!), cobriam tudo e os olhos redondos com pestanas radiais como a Maggie Simpson olhavam para nós, impassíveis. Conforme os dias, a carantonha do homem mudava cento e oitenta graus. A Mulher, calhou a vê-lo em dias maus, mas noutros, as fotos, mostravam menos fealdade, diria mesmo que, por vezes, parecia bonito! Acomoda-se este ser na sua miúda, Morna, que se finge quente e muito moldável e geme e brada e declama mentirosa que ele lhe é fatal e a melhor escolha! E o tonto acredita, e enche o ego até lhe saltarem os bolsos para fora com o recheio de dinheiro que Morna lambe! Ah que casal tão complementar! Ela recebe os juros da vaidade que lhe insufla no ego inchado - quero vê-lo rebentar! - talvez estoure o outro dentinho e vá embater na garraf...

O 31

Era meloso e entrava de finhinho a meter conversa: que bom, que lindo, olhe sou bom rapaz, e tenha cuidado com, e gosto - repetia-se - e sabia bem porque sabe bem ser apreciado, só porque sim. Ele era daquelas pessoas que, pegando confiança, lá estaria a mandar-nos aos ares e pegar-nos na queda, o que faz rir a bandeiras despregadas qualquer bebé e os eternos bebés que guardamos dentro de nós, sem ser por querer, mas porque é assim, pronto! E ele insinuava-se e ela admirava a renda que fazia com as palavras, a renda e o algodão doce, as pipocas, as fábulas, os contares infantis e mimados da província, do campo, da praia, das heranças culturais de uma geração e porque sim, apreciava o senhor. Mas  o senhor das palavras encantadas era desdobrável em mil caricaturas - foi o que ela descobriu assim que ele se apresentou em pop-up, muito saliente e evidentemente seguro de si, a pender para o campo vital dela e ai Jesus!, ela escondeu-se por trás do silêncio, fez uma cara carrancuda para...

As múltiplas sombras de Otávio

Ah o Otávio, o Otávio; o Távi, o Távinho! Lembro-me dele, impávido ao tempo, sempre o sorriso comedido, a significar coisas diferentes dos sorrisos nas outras pessoas, muito firme nas suas extravagâncias - devemos classificá-las de extravagância ou de misoginia?! - o Távi muito certo das suas certezas, funcionário público, daqueles casos tão caricatos da norma, que poucos são tanto assim! Ele era esse tanto, essa exceção de tanta normalidade. Perdoem a contradição, mas penso que sabem do que falo. Olha eu conheci o Távi quando ele era diferente, deixava-nos a trabalhar no grupo e com toda a lata ia ler o jornal para o café,  sistematicamente! Quem diria, depois tão rigoroso com os outros, desde que se tornou meio-chefe. Meio-chefe é chefe intermédio, daqueles que sobrevivem a mandatos e mandatos dos líderes principais que fluem entre os vários ministérios ou mesmo vão a outras vidas, e eles sempre lá - muito típico, aliás! Eu conheci um Otávio inovador: imaginava maneiras de fazer ...

Um Jogo Real

Um Jogo Real novembro 01, 2021 Os jogos reais (Real Games) servem para ensaiar competências e foram iniciados nos Estados Unidos da América no treino para a guerra. Porém, o seu potencial é enorme, e a gamificação alastra pelas atividades humanas, usando e abusando dos mais básicos mecanismos de sobrevivência humanos e da tradicional ignorância que deles temos. Não se trata de verdadeira ignorância, mas da necessidade da sua ocultação na sombra do pensamento e da autoconsciência, porque nega muito do que aprendemos e do que fomos educados para acreditar.   Mas este é um parco enquadramento, não é um ensaio sobre o comportamento humano: uma pequena estória apenas, vivida algures, ontem, hoje e amanhã, por aí, pelo mundo. Procurai nas salas de espera dos aeroportos e nas selfies das redes sociais! Heminssen era um homem extrovertido, o seu trabalho permitia-lhe e exigia-lhe muitas viagens dentro do país. No entanto, a Noruega é difícil para os humanos naquela fase sem luz, e quanto m...