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A mostrar mensagens de agosto, 2021

O Casal

Ela estava a olhar para a foto do casal. Ele, muito mais novo do que agora, como se tivesse entretanto dobrado o cabo da idade dura. Ainda assim, compacto, com fácies de árabe aloirado - talvez com brancos a Petróleo Olex. Ela, de figura esbelta, resplandecia num sorriso de fim de cigarro, e, sobretudo, no V do decote generoso, onde era impossível não reter o olhar no trabalho de um cirurgião plástico. E os dois eram legendados como sendo os gestores do novo restaurante de praia fluvial, no jornal digital da autarquia. E ainda lá estão no Google, apesar da vida ter dado o pino, no caso dele, e no dela, um mortal. Outras histórias! O homenzinho quadrado, hoje mais calvo, compõe o penacho à frequência do tique de uma garota afetada pela franja, um maneirismo que irrita a interlocutora - olhe lá, corte, rape, deixe-se de gato escondido com o rabo de fora - que não diria nada daquilo, continuava a ouvi-lo contar a história: a mulher esbaforida, sentada em cima da grande arca cheia de arte...

O Grego

Grego, chamam-lhe assim os compinchas, é um cinquentão suburbano. Desculpem a rudeza, mas ele tem orgulho em ser tudo o que um suburbano é. E na verdade, primeiro foi um nómada a acompanhar o pai militar. Fez muita camaradagem pelo país fora, fácil que lhe é comunicar. Fala de tudo, pensa ele, mas não lê um livro, e além disso consegue realizar todos os seus objetivos. Na capital, onde se fixou, adquiriu uma vivenda em bairro periférico, económica mesmo, com a ajuda do banco para o qual trabalhava. Entusiasmado, comprou mais umas casinhas modestas, mas bem localizadas, sempre com as regalias dos bancários, e as filhas sabem que não precisam muito de estudar, só o básico. É que o Gregório meteu-se num negócio de táxis com a mulher, e quando pensou ver-se livre, ocorreu-lhe expandir em fama algumas manias dela, a ponto de a enlouquecer de verdade, ou quase, e então o Gregório tentou interná-la num hospital psiquiátrico, à velha moda do passado. Mas o sogro não anuiu e o Gregório esperou ...

Guacimeta.

Ela pousou a bagagem e procurou pelas vistas - à frente, um pequeno logradouro e um naco de mar azul ferrete sobre os telhados; atrás, uns montes a lembrarem peitos maternos, ou então os que desenhava em criança. Uma sugestão naif começou a instalar-se: estava num lugar de tenra idade em tempos da Gaia Terra.  O quarto do apartamento, com o mesmo nome do local - Guacimeta -, era comum e sem ambição, ainda que confortável, mas viria a ter um divertimento extra: baratas voadoras gigantes. Ela não se importou muito, nem ele! Já as inglesas do quarto ao lado gritavam e riam, em histeria! Cinco minutos a andar e molhava o pé e o resto na Playa Guacimeta, de areia escura e água bem temperada de cor esmeralda e pousava para uma foto com os cabelos em desalinho espalhados pelo vento, guardada em rolo para revelar depois. Por toda a ilha, ela sentiu falta de construções em altura, era tudo baixo, mas o desconforto anunciou-se mais sério quando verificou que não havia árvores, apenas pequeno...

O real.

É, eles cantarolam nos seus afazeres de férias, limpam a garagem bem exposta à luz, são uma família musical. Lá longe, mas o vento traz, uma azáfama com vozes de todas as idades, dizem-me que estão a apanhar pêras, as Rocha, que se industrializaram no local, e lembro de um dia por ano ter feito o mesmo. Uma aprendizagem para a vida, resistir e acomodar estilos de vida diferentes e firmados, onde o meu pouco ou nada contava, era eu que tinha de me adaptar. De resto, o dia resolveu brilhar e aquecer, esquecendo as névoas e capacetes que entristessem. Pontilham o meu horizonte árvores diversas, sem exploração, princesas da paisagem, mas mais a cima, rente ao horizonte, campos penteados de eucaliptos, escravos, e uns salpicos brancos, lares de alguém. E se quiser ver, há um baile de moscas, a aproveitar o frescor, geómetras que calculam o centro da sombra. Ainda agora uma viajante barulhenta me cumprimentou raspando o ar junto ao ouvido, mas levou o meu protesto. As cadelas visitam-me de v...

Infantil

Infantil, recebe agraciamentos como se fossem gratuitos. Descuida e confia como uma criança amada e protegida em casa. Exige-se essa falsa naturalidade, de sentido linear, entre uma causa e um efeito. Não extraiu a moral das histórias do real. Não quis saber da crueza das razões comuns. Fez-se a si mesma princesa, bebé eterna, deslumbrada com pequenos nadas; planeia encontrar momentos felizes e memórias longas com químicos da alegria, a expansão mental e a ligação afetiva cuidada pelo Outro. O Outro, com papel escrito para instrumento de afeição, nem sujeito, nem autor, fabricado em abril, na época exata da transição de regime a coincidir com a mudança púbere. Tudo fixo e acrítico. E depois, o queixume da inadaptação atribuída ao Mundo...

Um Homem Livre

Raposinho, assim chamado por causa dos olhos pequeninos cheios de esperteza, menino do mar, nascido no Brasil, pioneiro de surf, não parou toda a vida, de décadas, a fazer desporto e a viajar o mais que pôde, de bicicleta e, quando não pôde, fê-lo de avião.  O curso de educação física possibilita-lhe, de quando em vez, ser professor ou monitor, mas faz qualquer outra coisa, por pouco tempo, que lhe permita movimento, alimentação saudável, vegan não radical, conhecer pessoas, fazer amizades e sobrevivência minimalista. E viajar. Viajar é fundamental. Em novo, fez périplo de dança jazz pela Europa. Instalou-se em Portugal quando o Mundo se afundou em crise financeira, depois voltou a cirandar, por onde pôde.  A Internet roubou-lhe a exposição a novos pensamentos e a idade, já pouco juvenil, ajuda a firmar em cimento, ideias que deveriam saber-se em construção. Cansado das derivas políticas e da corrupção no seu país, escolheu a oposição, que depois ganhou a presidência, e é com ...

O Noivo

A mãe insistira para que ela visse um artigo de jornal que descrevia uma vida desperdiçada e ela guardou para mais tarde dentro de uma folha do livro de matemática e só seis meses depois leu e respondeu. Era um pedido de ajuda inespecífico. Marcaram encontro. - Olá, sou o Rumualdo Mendes, técnico gráfico. - Olá, sou a Marta e cá estou para ouvir a tua história. E ele levou-a ao Apollo 70 comer gelados grandes como se estivesse a obsequiá-la, muito palavroso, desenrolava uma história aliciante e complicada cheia de pontas para futura tecelagem, parecia um Xerazade. Ela não sabia nada daquelas artes, ouviu a maior parte do tempo e pontuou com uh-uhs e ah-sins, aqui e acolá. - Sabes, tenho tido uma vida muito ativa. Sou muito empreendedor. Vim de África, Angola, onde tinha um belíssimo emprego. E sem nada, retomei várias atividades, que não me conformo com trabalhos rotineiros. Vivo com os meus pais. De momento preparo vários projetos e invisto em mim! Era toda uma desenvoltura e linguage...

A Poeta do Amor Preso

Ela tem fé funda no amor que idolatra e possui uma vila de memórias, húmida, de apenas algumas ruas, com lampiões antigos, janelas modestas em prédios pequenos, uma ou duas árvores com meio século, um jardim com romãs, hibisco, e muitas roseiras de capricho imenso que ela mesma jardina - e creio que se lhe colam ao vestido pedaços de cal quando de madrugada se roça pelas paredes velhas lembrando beijos lambidos que lhe amarelaram os olhos. Nesses dias, invariavelmente, acaba junto ao Tejo, a liquefazer-se de saudade e a capturar para eternidades fotográficas o rio leitoso no amamento dos barcos ensonados, nenhum deles com o seu amante. Ah! esse amante espetral a quem segue o lastro, ao qual envia mensagens em setas de cupido com um veneno tão gostoso de que ele tem saudade real. Esse amante a quem reza, ora em tiros fotográficos, ora em haiku - será a poeta, budista? Não certamente, antes dedicada gueixa em queixume sublime que ecoa nos montes Fuji desta vida líquida. E encanta o secul...

A viagem

O carro engolia a língua comprida que era a autoestrada. Seguia para leste cortando o país ao meio. Perto do local escolhido no Google, pelas fotos e nome apelativo, os viajantes ondularam o olhar pelos horizontes sinusóides, carecas alguns, do fogo, outros com pequenos rebentos, do fogo anterior, ou, já com árvores maturas, esguias como pregos espetados em feitiço tribal africano, mas aqui, contra o ambiente! Eucaliptos! Eucaliptos em todo o redor, perto ou longe! Assim se faz a paisagem de Abrantes, vista da via escolhida pela app que lhes norteia a viagem. E, saem para estradas locais, bem comportados, quando a moça expedita da app lho diz, e prosseguem afundando-se tristemente em mais eucaliptos, mas agora sem comentários, não querendo estragar o dia. Em Milreu, só viram um grupo de senhoras junto à igreja, e foi uma delas que lhes disse que ali não havia restaurante, só em Vila de Rei. Comentaram o desinvestimento no turismo! E fizeram-se à estrada como sugerido, escolhendo da res...

Incompatibilidade - Dias de Marta.

≤Não me estou a segurar bem e não posso falar contigo ao telefone! Estou a liquefazer-me ao toque daquele assunto que será inevitável na nossa conversa. Talvez a derradeira. Aquela falta de vontade de ser inteiro que te adivinho. É fácil! És banal e os comuns fazem atos previsíveis, sempre que digo a mim mesma: "não!, não adivinho", lá está a realidade aos estalos como uma mãe antiga para me ensinar! Eu tomo dela: chapadões de luz, ou estrelas! E, dizia eu, é por isso que me derreto em águas salgadas e a visão turva! Já sei que vais dizer coisa nenhuma, és tão óbvio e desonesto intelectual quanto dizes "eu sou sincero". Já esperava, tanta insistência no óbvio só poderia anunciar a sua própria contradição! Nem tenho já conseguido falar ultimamente contigo. Tu falas e eu ouço, estupefacta, com os assuntos vazios da descrição da normalidade e da rotina! Até me parece que evitas dar tempo a assuntos profundos ou realmente importantes de serem falados! Como houve esta de...

Tempos de Faculdade 1

Ela era já professora, um pouco mais velha que os caloiros chegados do liceu seguido do propedêutico, mas muito bem disfarçada na turma de alunos estudantes-trabalhadores daqueles primeiros anos de faculdade. Pouco habituados a tirar apontamentos rápidos sucumbíamos, ora desistindo, ora gatafunhando ilegíveis testamentos. Ela fazia o milagre de escrever tudo em letra grande, roliça, em textos organizados graficamente, e depois - urra!- dava-nos para fotocopiar na Associação de Estudantes. Foi quem nos fez as sebentas dos primeiros anos de curso: obrigada Paula! Livros comprados, apenas um, o de biologia celular. Claro que havia um rapaz, de macaco de ganga, baixinho e de olho azul, que vivia noutro mundo: ia comprar livros a Espanha aconselhados por ex-professores e carregava com alguns naqueles dias de preguiça e furos do grupo diurno. Óbvio que foi longe! A dispersão do curso por salas de aula, métodos de ensino e matérias era divertida. Ninguém se preocupava, a não ser um cota muito...

Doce-amargo.

Ele subia calmamente a avenida universitária contando não chegar muito atrasado à aula na cave. Ela seguia-o a curta distância, sem entabular conversa, tímida, e contava com o mesmo que ele, mas nem havia faltas. Ele era um pouco quadrado, baixo, de ombros largos, blazer direito, em tweed, maleta à tiracolo. Às vezes ficava atrás dela nas aulas e, olhando-o de soslaio, via uns olhos grandes de um límpido azul, bem simétricos no rosto lunar, de perfeição DaVinciniana. Ele preferiria dizer: ariana! Anos mais tarde ouviu-lhe a calma do andar no tom da voz, um ritmo lento de expressão risonha, muito tecnológico nos saberes, com ar de conselheiro de serviço, cheio de boa educação. Nada faria prever as ideias que lhe fervilhavam na cabeça, nem as suas preocupações raciais. Raciais que estendia à classe social: - vêm da aldeia roubar os lugares a que nós (burgueses) temos direito! - revele-se, como ilustração. Dizia-se neonazi, mas ninguém o levava a sério, com aquele sorriso enganador. O enc...

A Borboleta.

As aulas eram no enorme anfiteatro de Letras, com professores conhecidos pelo nome e exame final - nada mais os ligava aos alunos.  A diversão era quando ela passava, com a saia curta, florida e rodada, a esvoaçar em cada degrau da escada, na cadência certa e musical do I'm feeling good, da Nina Simone - ouvia-se: "olha lá vai ela, a borboleta". Pouco se dava a conhecer, de resto discreta e tão principiante e insegura quanto nós; participava moderadamente nos trabalhos de grupo, sem a afetação adivinhada pelo andar de diva, sobretudo naqueles momentos de anfiteatro. Era uma atriz versátil. Mais tarde soube que fora alvo de sedução - é verdade, o feitiço virou-se - de Dom Juan do curso (um dos) e também soube da casa que o marido lhe comprara e que ela, ao ir embora, alugara ao tal, dito amante.  Por uma tuta e meia, deixou-o habitar o belo apartamento em zona central de Lisboa, quando desfeita, mas decidida pelo marido, partiu para o Porto, sua terra. Deixou os galos - m...

Eu e a outra Filomena

Em pequenas, quando eu visitava ou feriava na "terra", eu e a Filomena juntávamo-nos na casa da Tia Maria e do Tio Manuel para brincar. A Filomena tinha já conhecimento dos cantos da casa - e se ela era grande e cheia de mistérios - e eu pensava que a minha nova amiga era da família dos donos, mas não, estava enganada! Não tardava éramos duas crianças adotadas com simpatia pelo casal, uma adoção temporária, por umas horas por dia, para deleite e companhia dos hospitaleiros tios e nossa. Mais crescidas, fazíamos renda e alguma conversa desenxabida junto ao poço, na horta ou em casa da avó da Filomena, sendo que sentia a minha amiga, constrangida. E esse sentimento continuava quando, já na rua, cumpríamos as rotinas de comprar os tremoços com pevides no Ti Augusto, fazendo fila, e depois nos refastelávamo-nos no café de Ti Raúl a vê-lo a servir bebidas, de lápis na orelha, sempre a conversar e a rir. Cheirava fortemente a café, a vinho e a perfumes pobres. No café, todos tinham...

Os líderes e as soft skills - as crianças e a educação socioemocional

Os líderes das multinacionais treinados em soft skills, dito de outro modo: comunicação, empatia, competências socioemocionais em geral; que mandam fazer cartazes anti assédio moral para pôr na sala dos funcionários, rente ao frigorífico e ao vending, são premiados com prostitutas de luxo nos quartos dos seus hotéis, após as conferências plenas de gráficos e honrarias corporativas cheias de "nós" e de "alcançámos", e metas e objetivos e estratégias, uma verdadeira guerra -, recebem prémios de guerreiros, badges, pontos, mulheres servis, e outras curiosidades mórbidas, que omito.... E, na sua vida pessoal, frequentam festas de rissol e exibição de carros caros, companhia de estatuto ou bela, ou convidam a de engate para um dia na praia, desnuda, e permitem à eleita fazer selfies junto ao seu automóvel, para a inveja das amigas da rede social e alguma autopromoção do negócio! São incidentes críticos, dirão, situações de exceção - pode ser! -, mas o enviesamento segue ...

Romero

Romero era o filho mais novo, já fora de época, do casal Pôncios. Os olhos negros húmidos temperavam o sorriso inocente com um dentinho em falta no retrato mais famoso do garoto. Era uma ternura! A foto era um sucesso e fazia furor nas casa das tias avós, e de outras senhoras, já bem velhotas. O rapazito cresceu que não se deu por ela e sem grande rumor seguiu os passos de um primo ambicioso, que subira na vida fazendo amizades por interesse, e se punha um tom de voz de senhor doutor - ou seria de senhor engenheiro?- e depois tratou de fazer corresponder os diplomas à fama!   O docinho de rapaz fez-se homem. E lá pela vida que escolheu, foi avançando sem estrépito, até que o povo inteiro da terra se deu conta que o nome da esposa não cabia na linha de um caderno e que o aniversário dos filhos rateava as festas populares, coincidindo com as suas datas com oferendas, esplendor e ruído de festa maior que as maiores festas da terra. E até pareceria mal não ir! Assim, sob perplexidade d...

Lolita

Vinha eu de mota na zona da Moita Seca, já escurecia, quando urgiu aliviar-me no matagal - coisa rápida -, e logo ali vi um tufo de pêlo a gemer, que agarrei, acomodei no blusão e retornei à estrada cheio de cuidado, com a coisinha fofa a revolver-se junto ao estômago. Acerquei-me da cidade mais próxima, comprei comida para a cachorrinha, e dei-lhe água - pernoitei ali mesmo explicando a situação no motel. E desde aí batizei-a de Lolita e é a minha companheira animal fiel com a qual me esmero, já lá vão três anos. Depois da cirurgia para não engravidar, engordou, a minha miúda - é assim que gosto de lhe chamar. Noutro dia, a miúda soltou-se e, soube depois, foi aliciada por um homem com bom aspeto, que a afagou e a atraiu com um osso! A pobre Lolita acabou no tacho e a pele dela como relíquia está dependurada nas traseiras da vivenda do assassino. Não pensem que se apresenta como um pária! Não, o comedor da minha Lolita é gente com trato e algum dinheiro. Não havia necessidade de me ro...