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A mostrar mensagens de setembro, 2021

Deuses ou Darwin e Ele.

Os favos das abelhas foram criados por deuses ou por misteriosos seguidores de Darwin. Não por Ele! Já as casas da Encosta e as favelas, são garatujas a lápis de crianças geradas em impulsos grávidos. Por Ele?! As torres das cidades são menires arquitetados por fetos adiados em barrigas lisas, germinadas por carros de linhas aerodinâmicas. Por Ele, certamente! A diferença entre os três aglomerados está nos tempos de maturação da líbido. Em reviravolta, o Mundo tem torres, favelas e encostas em abundância e abelhas em extermínio - são desordens ecológicas, frutos precipitados de urgência e vaidade; futuros breves garatujados por arquitetos apreciadores de  lotaria. Despenham-se de qualquer modo todos os modos juntos em futuros incertos nas mãos de deuses ou Darwin. Ele também! (Ele - Homo Deus, a caminho do pós-humano, do superhomem)  

Registos de vida.

A minha vida está quase toda por escrito. Quando acabar de escrevê-la, fico limpa. Reservadas as memórias entre os folhos das páginas e as diatribes do scroll, talvez estime alguns escolhos mais rudes com ampulhetas psicométricas, ou ampare os excessos de pele com andaimes terapêuticos. [Daqueles ainda não submetidos a prova, livres de controlo apertado, espectrais] Após esse trabalho estarei purificada sem participar em rodas na serra da lua ou do sol, com marcas celtas, mandalas e pedras benzidas por rezas new age com hidromel. A laca que vou pôr em tudo, emprestará uma eternidade razoável em termos de autoestima familiar e não vai ficar ninguém para recordar, melhor, não ficará memória sólida em gente humana; já não direi o mesmo das catacumbas das bases de dados digitais e seus algoritmos a funcionar: é possível que restem de mim, alguns avatares, em subducção. 

Houellebecq - Insubmissão

[Conversa imaginária com o personagem principal do livro Submissão, de Michel Houellebecq, após o final da história narrada] Que miséria de produção científica senhor professor, hem?! Em cada início de ano cativava uma aluna! Em cada início de ano, a sua fama, levava a que algumas alunas se perfilassem para isso - demasiado fácil! E nas férias, elas assumiam com outros as coisas sérias. Porque o senhor professor era um homem vazio, obcecado por performance sexual, que não se sabia divertir, monocórdico e desinteressante - depois de dissecada a sua tese, que mais ficava?! Um corpo dormente, meio flácido, sem reação, sacando argolas de fumo deitado na cama, a usufruir do desnível de poder com a mão sobre a coxa jovem. E além disso, sem namoro, sem passeios ou bons restaurantes, ou lhes apresentar a família...  Nem conhece o seu país! Enfronhado na Academia - muito me rio só de imaginar!... - com as duas pequenas muçulmanas no lar, vai esgotar a pica, a energia vital que tinha, reativ...

Trechos de vida 2

 Já ia nos trinta e muitos, quando se apercebeu de um trauma fundamental: a morte da criação, nome dado aos animais domésticos. A frieza com que se criava e se matava em grande sofrimento, o animal, sem qualquer empatia, destruíram a sua confiança na humanidade, pois se nem os que estão próximos se comovem?! E não a poupavam, apesar de ela não ser uma criança criada na aldeia e estar desprotegida, ou por algum motivo ser mais sensível. Quando se sentia em perigo, mesmo que simbólico, era assolada pelo sentimento que captara dos animais a serem assassinados, os seus gritos, o jorrar do sangue, a alegria dos matadores, a transformação do ser em carne, as refeições em que participou, na altura sem sentir repulsa - observava aturdida. Foi mais tarde que tudo se compôs na sua mente, aí pela adolescência, altura em que já não assistia a tais atos. Mas foi nesse tempo que os medos fóbicos a subjugaram e começaram a mandar na sua vida, escolhendo por ela. Mas o pior foi ter perdido a confi...

Trechos de Vida 1

 "Vou-me sentar ao pé do meu marido" - disse a mãe, levantando-se do sofá, do lado dela, para se encostar ao marido, no outro sofá, a 45 graus daquele onde se encontrava. Marta ficou com a saliva bloqueada na garganta, a sentir-se miserável. "Quem não tem o amor dos pais, não tem de mais ninguém", era o que a voz do íntimo lhe dizia obsessivamente desde pequena. Estava tão carente. A precisar de uma carícia física ou verbal... Não seria de esperar que a mãe lha fizesse, não tinha uma única memória inteira de um carinho ou toque dela, que não sentisse a dureza da aliança na face, em bofetada. Nem ao menos uma conversa corrente, a ouvir a voz mais doce do mundo, que é a da mãe. Marta sentia-se muito confusa, mas não conseguia deixar de sentir o amor pela mãe e curiosamente, também sentir o dela, embora... Talvez em fragmentos vagos de um peito a amamentá-la, algumas frases "não façam sofrer a miúda" quando os cães rosnavam, não propriamente os cães, mas o pa...

A Encosta - Resiliência.

[Anapaula, a mãe quer-te contar uma coisa: vamos mudar para a Encosta outra vez e temos que arrumar os nossos pertences.] Não, a mãe de Anapaula, Briona, não fala assim como os professores. Ela faltava à escola quando era pequena, ficou com o quinto ano. Não gostava dos colegas, não a integravam, gozavam com a roupa de feira e diziam que cheirava mal. Não fala assim, mas ninguém pode falar por ela sem distorção, que seja então esta a seu favor. Briona vivia em casas da Câmara, em casebres ou em barracas. Às vezes levavam-na a visitar a mãe que estava presa e o pai que estava preso, mas poucas eram essas vezes, porque tinha muito trabalho a tomar conta dos cinco irmãos. Briona ia buscar água com uns garrafões e poucas vezes ia ao banho. Era difícil. Aquecer água nas panelas. Mandar os irmãos para a rua. Vedar as frestas para que não espreitassem, ou os outros miúdos da vizinhança. As baratas. Os ratos. Os piolhos. Tudo tão difícil! E conheceu o Clóvis que tinha hábitos de consumir droga...

Histórias da profissão - A Área de Social.

No terceiro ano tínhamos a Cadeira de Psicologia Social. O professor Pina Prata gostava de falar do triângulo relacional e da importância da cadeira vazia...enfim, da sistémica. Os seus assistentes, o Luís Miguel e o Zé Manel, acabados de licenciar, eram muito animados. Debitavam investigação, aquelas experiências famosas da psicologia social. Saltavam para cima das mesas, empolgados! A matéria ficou bastante no ar e nós agitados, um pouco sem parâmetros. O colega Rui, da Madeira, gostava bastante do triângulo do Pina Prata, parece que ainda o vejo a comentá-lo! Várias meninas se entusiasmaram com o congresso internacional de terapia familiar sistémica, a Paula, a Isabel e outras e aceitaram participar como recepcionistas e outras funções na organização do evento. Aproveitaram para comprar vestidos e se aperaltar. Muita vaidade por ali ia e eu pensei que aquela Psicologia Social não era para mim! Enganei-me! Sempre foi uma área que me interessou e foi por ela que me entusiasmei pela es...

Histórias da profissão - psicanálise vs psicolinguística.

No segundo ano deveríamos optar pela cadeira de Psicanálise ou pela de Psicolinguística. A maioria dos alunos escolheu a primeira. Sei que fui assistir a uma aula de um professor de Psicanálise, muito corado, que ria e dizia coisas estranhíssimas. Era uma aula teatral. Ou seria circense?! Eu era uma miúda séria na altura e virei-me para a Psicolinguística. O professor era competente e muito educado. O grupo de alunos muito pequeno: reuniamo-nos à volta de uma mesa no laboratório de psicologia. O professor discorria. Havia muita informação técnica, física sobre o som. Ficávamos ensonados naquelas três horas. À minha frente, o Pedro Ayres de Magalhães dos Madredeus, talvez também o Paulo Landeiro e mais três ou quatro colegas de quem não me lembro. Todos em grande esforço de não deixar mal o professor. A matéria era interessante, mas ... Foi útil, alguma dela, a restante perdeu-se na memória. Era uma cadeira pesadota, entre o fim da tarde e a noite, a fome a apertar para o jantar....No a...

O Verdadeiro Significado de Empresa Familiar

Gorgi é alcunha, Lott é apelido, ela anda por aí! De novo à beira de algo comprometedor! A cobertura na empresa de vinhos é-lhe útil para fazer contactos com bons partidos, viajar e não ter grande concorrência. João Lopo, do Alentejo, tinha-se divorciado, focava a sua atenção no trabalho de gestão vinícola e ela era uma negociante. Simpática, prometia sucessos, apresentava resultados - uma linguagem de gestão orientada para os mercados internacionais - sabedora de detalhes técnicos, abria-lhe a garrafa exibindo tudo o que a promovesse, o peito roliço e harmonioso na camisola discreta na cor, o traseiro ondulante semi escondido nas calças quase básicas, a perna cheia, adivinhada, enquanto em paralelo lhe lançava desafios de práxis muito masculina e o distraia a entrar e a sair de um registo para o outro, desprotegendo-o face à sua eficácia felina! E acabava onde ela queria, e depois ia introduzindo temas conservadores a apontar para casamento e ele aderia ou não! Não aderiu! Às vezes, c...

Histórias da profissão - o anel do professor .

Entre os professores, havia uns bem jovens com entusiasmo contagiante - pelo menos esse sentimento reverberava em si mesmos e nós observávamos, sorrindo perplexos ou dobrando gargalhadas. As aulas do quarto ano eram já nos cubículos da Pinheiro Chagas. As salas com divisórias de perfil de alumínio e painéis castanhos, eram frágeis; as janelas abertas não conseguiam escoar a fumaça do tabaco, particularmente com o ar pesado do Inverno. A turma da noite era constituída por muitos trabalhadores estudantes. No segundo piso, na área de Orientação (A), recebíamos os professores das outras áreas e nesses dias tínhamos a cadeira de Psicoterapia e um professor muito jovem de cabelo aos cachos  a acariciar e a especular sobre o seu anel, que lhe dava feedback sobre qualquer variável não observável: seria stress?! E mudava de cor! Ele, muito entusiasmado, também nos bombardeava com resultados empíricos, acariciando o idolatrado anel! Uma graça, este professor do quarto andar da área C, penso ...

Histórias da profissão - a professora Luz Cary.

Seria na prática de Psicologia Experimental?! Já não me recordo qual a cadeira que a professora Cary leccionava, mas parece que estou a vê-la a reunir connosco no corredor, numa grande mesa, perto da biblioteca, para prepararmos a investigação sobre consciência fonológica. Estávamos no primeiro ou segundo ano do curso e éramos chamados a participar em experiências muito interessantes. Não éramos escravos, envolviam-nos na compreensão e planeamento, na concepção de materiais, etc. Eu e a Paula Loja fizemos desenhos para os cartões, arranjámos estrunfes, um xilofone; a Isabel Fonseca, era na altura Educadora pela Arte numa escola da Penha de França e tratou de toda a logística. Estudámos a teoria, investigação anterior, debatemos, organizámos a nossa ida, treinámos os protocolos. A aplicação às crianças foi deliciosa! O estrunfe representava um fonema que era adicionado ou subtraído, no início ou final da palavra. O grupo de controlo tinha atividades idênticas, mas com sons musicais. Dep...

Histórias da profissão - o professor de antropologia.

As aulas de antropologia eram fascinantes: as tribos ameríndias, as das ilhas do Pacífico, as sociedades dos saguins, a etologia, os teóricos: Saussure, Margaret Mead, Radcliff-Brown, Konrad Lorenz etc. etc. E até o Paradigma Perdido, do Edgar Morin, lido com muita avidez. Foi uma formação e pêras! O professor era muito fluente, as aulas eram empolgantes e lá atrás, ao fundo da sala, na cave de Letras, havia, por vezes, uma ou outra senhora, que nós designávamos por "namorada". Quando chegava a avaliação, se escrita, o professor reunia os 100 alunos no anfiteatro de Letras e instituía um sistema policial de vigilância, e penso que nem podíamos trazer a folha de resposta, uma folha grande, pautada, era ele que a dava - tudo com muita desconfiança de cópia! As orais então eram um folclore, talvez deprimente, mas nós conseguimos retirar divertimento à coisa. Era mais ou menos assim: esperávamos pelo professor horas sem fim, dias até, já sentados pelo chão, no corredor da bibliot...

Histórias da profissão - a hipnose.

Uma vez passava pelo Santo António, em Alvalade e vi um pequeno cartaz colado num poste anunciando um evento no Hospital Júlio de Matos sobre hipnose. Como fiquei incrédula e era logo ali, fui espreitar. Era até gratuito. No anfiteatro estavam as sumidades que eu conhecia na altura da Faculdade de Psicologia ou da Associação Portuguesa de Psicologia. Professores universitários, se me faço entender. Ele era o futuro primeiro bastonário da ordem dos psicólogos, ele era o presidente da dita associação nortenha, e muitos outros. Muitos homens. E, no palco, um senhor falava em inglês e eu mal o compreendia, e mostrava videos. Era um workshop e tivemos sessão prática ficando eu no honroso papel de terapeuta do colega da associação de psis, a pô-lo a levantar o braço e a entrar em transe. Lembro-me que o Telmo Batista apegava-se muito às questões do uso de metáforas. No evento, entregaram documentação sobre a hipnose indireta de Milton Erickson. Guardei-a religiosamente. A partir daí empenhei...

Um recorte no espelho

A comunidade indiana em Portugal tem hoje um evento: o casamento da filha de Shatliva e Rioma. Apesar da casta, fazem trabalho braçal. Esperam o melhor para a segunda geração, que já frequenta a universidade e alimentam amizades, o mais que podem, para criar rede de apoio entre os portugueses, sobretudo os distintos. Foi assim que se dispuseram a participar em estudos sobre a diáspora indiana por antropólogos e desse modo confiaram em Carla Nuvem, conhecida dos tempos de Moçambique. Um nome invulgar numa pessoa incomum. Ela mesma sem pedigree, apenas o esforço comercial dos pais migrantes de Viseu para a Capital e um negócio de sal. A casinha pobre em Lisboa antiga, foi a que herdou, mas agora é valiosíssima com as políticas da autarquia e o mercado a inflacionar o valor da habitação. O casamento também lhe deu o nome composto por duas partes, pomposo, com bisnetice de relevo nacional e um primeiro marido de bem com a universidade, que lhe abriu portas e janelas e a co-autoria dos prim...

O Passeio à Ilha

Era uma vez uma aldeia à beira-mar e outro vilarejo no sopé da serra, um apartamento na cidade com vista para o jardim e a ilha para onde nos dirigimos...vamos levar sanduíches e sumo de tomate, ou preferes limonada? Laranjada? Uma cerveja artesanal? Ou... Vamos ser felizes no nosso paraíso privado, viajando por onde for ou simplesmente acontecer, porque temos dentro de nós todas as sementes e muitas não germinaram ainda, então podemos fazer o não-feito, o que ficou no outro ramo de cada decisão e rumar para a frente e para todos os lados e tempos das nossas vidas...assim seja! Vamos! ..... Ah, que parvoíce ter esquecido a Nancy Barros, ela iria adorar e divertir-nos ainda mais. Cuidado com a abelha, não faças nada! Há tantas abelhas agora na sua azáfama! Na ilha também teremos muitos animais selvagens, faremos uma fogueira a noite e montaremos uma agenda de guarda. Vai ser bom! Tudo vai ficar para trás! Sabes remar Luana?! Anda cá, que te ensino! O marulhar, o cheiro forte a subir ao ...

A casa e a instituição

Sofia sorria com doçura para Kátia, a filha do Rui, seu marido. Gostava de ver a menina com aquele vestido. Era com orgulho maternal que ia buscá-la todos os dias à escola. Aos fins de semana, Kátia visitava a mãe, que estava deprimida. Perdera para o Rui o caso em Tribunal onde o acusara de tentar agredi-la com um ferro quente. Sofia tinha medo do Rui e amava-o. Ele às vezes beijava-a com um sentimento de irmão, marido, pai e mãe - uma família completa que ela sempre desejara ter. Sofia passara 13 anos numa instituição de acolhimento. Os irmãos também, cada um em sua. Três irmãos que não lembra. Guarda uma foto de todos. Olha pela janela da cozinha, da cozinha bonita e bem equipada, o frigorífico cheio pela sogra. Olha pela janela e vê o casario pelos montes fora, algures Lisboa que mal conhece, só o rio, a expo, pouco mais! Nas traseiras, brinca a sua bebé com a avó, num pequeno jardim no quintal. Tem uma vida de sonho, até empregada, uma vez por semana. O Rui é que se zanga muito co...

Jacuzzi e cobiça.

Finalmente M. conseguia entrar na água borbulhante, após uma espera vígil disfarçada no "fazer piscinas". Estava ainda a instalar-se no modo relaxado e preguiçoso, quando duas mulheres começaram a rondar o local com o intento provável de saberem as regras de entrada e permanência na fervura aquosa, ao mesmo tempo que mostravam vontade de participar; mas ela acabara de entrar. Uma perguntou se podiam juntar-se, ignorando a Covid e suas regras expressas no cartaz junto ao chão e ao jacuzzi. Perdão?! Lá foram instalar-se nas cadeiras longas da piscina, depois voltaram e deixaram as toalhas penduradas numa suposta marcação de lugar. Uma delas, a que sempre tomava a iniciativa dos contactos, rondava a grande banheira que nem uma varejeira, aos círculos. Depois, não se conteve e perguntou se a banhoca estava quase a terminar. E estava. Segui-se a sauna com vista para o banho borbulhante das duas damas, vigiado por um  homem que se instalou numa das camas de repouso, contíguas ao ja...

Os amores.

Os amores infectos. Os amores ineptos. Os amores amparo. Os amores porvir. Os amores carnais. Os amores abismo. Os amores impuros. Os amores maduros. Os amores pútridos. Os amores inferno. Os amores racionais. Os amores indecentes. Os amores inocentes. Os amores vendavais. Os amores soturnos. Os amores decimais. Os amores ubíquos. Os amores ínfimos. Os amores inceptos. Os amores inquinados. Os amores inspirados. Os amores paralelos. Os amores obsessivos. Os amores levianos. Os amores insanos. Os amores labirínticos. Os amores formais. Os amores primeiros. Os amores insípidos. Os amores lúbricos. Os amores anteriores. Os amores fatais. Os amores imbecis. Os amores ruins. Os amores multicores. Os amores endémicos. Os amores de empréstimo. Os amores relâmpago. Os amores instantâneos. Os amores diluídos. Os amores recíprocos. Os amores incorrespondidos. Os amores escravos. Os amores incómodos. Os amores imbróglio. Os amores in vitro. Os amores combinados. Os amores espirituais. Os amores e...

A Casa Ensombrada.

Olá amiga. Obrigada pelo teu convite, mas não posso ir. Eu é que deveria receber-te em minha casa. Sabes?! Escolher a toalha de tecido nobre, cozinhar, ser pasteleira, ter à espera um bom vinho, com alternativas, uma sobremesa que te surpreendesse e conversarmos de coisas diferentes das habituais, animadas pelo álcool. Era assim que deveria ser! A música e tudo, tudo pensado, para te receber. Não é que não pense, mas fogem-me as ideias para outras coisas e não tenho andado cá por baixo. Na verdade, a minha casa só é minha por fracos motivos, pouco a frequento. Mas ainda cá hão de estar as toalhas de linho e outros tecidos de que a minha mãe saberia o nome, e sei fantasiar, e cozinhar... será que ainda sei?! Que raio descobriria eu se me pusesse à prova?! Ah, melhor não pensar, mas faltam muitas coisas na minha casa de hoje - está tão vazia! E as lembranças também vão esmorecendo apesar da casa ter uma memória de elefante, portanto, chata! Os recantos, os tecidos, os móveis, as louças, ...

As reuniões caninas.

Era uma reunião no canil dos cães-pastores. Vieram novos cães e era preciso disseminar as regras de convivência e ainda os modos de trabalho de pastoreio. Todos os cães voltaram o focinho para a fronte da jaula, cada um em sua, separados por divisórias, e sentados, aguardaram pacientes. Alguns, atrasados, foram compondo o formato de parada e acertando a sua imagem pela dos outros, bem centrada na janela da jaula. E assim, foi possível ver uma fila de cães bem comportados, tranquilos e expectantes, enquanto o veterinário se enquadrava ao lado dos pastores e do líder dos pastores. Por fim, começou a falar o mais valioso. E disse que era assim por ali, assim e assado, mas o que importava eram as regras centrais, que o funcionamento local definido na bula era assim-assim de importante, e, sugeriu que se regessem por exemplos como o seu. Ficou explicando detalhadamente como fez uma vez e outra vez nos seus pastoreios. Os cães mais velhos ajeitaram a posição, por desconforto, e um representa...

A Ouvinte Possível de Os Cus deJudas

Acabei hoje de ler o seu livro, quatro décadas depois. Reconheci-me - mal me lembrava de si - e porque na escrita acrescentou muito mais pormenores. Desconhecia a sua identidade. Mas fui eu a sua ouvinte e projeto de amante, naquele dia. Era ainda inverno, eu ainda jovem, tão jovem, o António tinha uns anos mais, contábeis pelos dedos das mãos, mas estava inquieto, inseguro, assustado. Encontrámo-nos num bar e depois fomos à sua casa quase vazia no Areeiro. Passámos umas doze horas juntos e contou muitas histórias e peripécias da sua vida, como se estivesse a morrer. Na altura, conjecturei que teria uma doença sem cura e que estava a passar pelo túnel da morte, aquele que dizem nos traz flashes acelerados de toda a nossa vida. Assim foi consigo. Por vezes cheguei mesmo a dormitar de cansaço, mas depois tomei café para me segurar e acompanhar o seu rio rápido de memórias a entrançarem-se em nós. Lembro-me do António insistir no trato por você. Eu, que era de origem humilde, percebi que ...

JAREQUABÁ dois

Minha frorzinha, meu chururu, minha avezinha, meu bilibim....assobiava eu, já recomposto, caminhava pelas ruas de Jarequabá, com chapéu panamá de palha que tomara emprestado de titio, para me mostrar, com calça vincada às riscas e camisa alva. Via as floreiras de catos e suculentas, via o céu brilhante de veludo celeste, via os moleques jogando a pelota e eu ainda chutei nela para meter conversa e mostrar meu lado descontraído para as moças de vestido de cintura descaída e rosa branca no cabelo, que saiam da missa e me comentavam de soslaio. Minha frorzinha, murmurava eu com a alegria do regresso, ai saudade! Partira ainda pequenito e já ninguém me era familiar...teria de começar tudo de novo!  Parei no café Jasmim, ai frorzinha, murmurei cantarolando, sentei na esplanada, coberta com trepadeira, ao frescor dos limoeiros, e pedi Garçom, me sirva uma limonada desses belos limões e o melhor pastel da casa!  E ai frorzinha, borbulhei no meu cubano, que titio me adiantara, para me...

Jarequabá

Regresso a Jarequabá, venho só com a maleta puída, três mudas de roupa, uma gravata, um par de sapatilhas-luva e uns chinelos de sola de borracha alta. O ônibus sacudiu meu corpo desapiedadamente, todo eu pareço um chocalho, mas até foi bom, confundiu os sentimentos que me confundiam a mim, acho mesmo que quebrou aquele que me doía: um espinho cravado do peito à garganta. A viagem durou dois dias inteirinhos. Falei com velhinhas desdentadas a guardar restos de saliva em panos encardidos -, de lavar, suponho, em água ferrosa, das minas. Ouvi de itinerário, e acidente, e medicina e até de fura-vida das coisas do espírito - tá bem, tá bem, senhora, e o tio Tridentino? - quê?! Franziam elas o rosto, confusas. - quê nada dona, deixe estar, agora vou dormir, se cair no seu ombro, me desculpe, é só me acordar. E elas mudavam de lugar, assim que começava a roncar e a rir para dentro. Safadinho, dizia Mimia Júlia, outrora, que agora jaz telha, morta morrida.   A minha exaustão foi temperada...

Gaivotas

Chegou a vez da Rainha, recolhida para uma cova na areia e abandonada a morrer à sede, à fome, não chegando a tolher completamente da doença. Primeiro, apareceu a jovem Fonte, filha da Telha, inexperiente. Ficou alarmada: - Rainha. Rainha, sai daí, que te prenderam, anda, foge! Num ímpeto, a Rainha cedeu àquela ideia louca e saltou para fora da cova, mas mais não conseguiu fazer.  Os humanos passavam sem lhe ligar. Ficou muito surpreendida: era a primeira vez. Ela que sempre mediu boas distâncias com eles, mesmo após ser adotada no bando Champions da Pesca, da pesca dos pescadores e da caça à sobra, em que tinham o convívio possível com gente. Sempre teve cuidados redobrados, a quem por detrás surja, geralmente os mais pequenos, uma correria gritada, insane. Muito diferente dos avisos, cantos, e noticiário entre gaivotas. Dali não se esperaria nada se não fazê-las assustar e levantar vôo em debandada. E olhavam os mais velhos para um pedaço escuro que punham entre eles e nós. Para ...

Conversas com a dona

Sei que fica perplexa por lhe chamar dona, mas que no fundo gosta da minha companhia. Está aqui a ressoar nos tímpanos murchos o tlão tlão das horas do relógio de corda e o tic tac dos segundos, a calcular os minutos no intervalo -, que tem sobras de tempo para gostar das conversas que lhe trago aqui à sua casa apalaçada, onde o seu filho vem dar corda aos relógios e corrigir algum defeito elétrico, e fazer perguntas infantis e simples de resposta rápida. Comigo a conversa tem uma história de croché colcha de cama, em bilros a quatro mãos. A mulher de que lhe falo, dona, tem coisas com nome de gente, mesmo antes de ser moda. O Antoninho é um urso que o namorado lhe ofereceu para abraçar na solidão.  Tem o tamanho de um bebé e ela quase nunca se lembra de afagar o urso, tão habituada que está de vê-lo no móvel de cruzetas japonês. E tem pó, de desprezo e do outro. O João é uma planta alta com doze anos. Bifurcou-se há pouco tempo e precisa de pouca atenção. Recebeu-a sob protesto do...

Do Estacionamento

No estacionamento do Bristô, enrolaram-se num beijo molhado, dona, no carro preto do engenheiro, pareceram horas. Ainda no dia anterior tinham ido passear lá prós lados do Martil, um roteiro de exercício, andaram para trás e para a frente. Sem beijinho. Tudo afastado. E no dia seguinte, dona, foi assim: pegaram-se. E o tempo deu de passar, passando, passajando, e o relógio foi competir com o calendário da garagem do ti Rosário, cheio de gajas bronzeadas e definidas de músculos, e eu havia de ver os dois desenrolados, enrolarem-se de novo?! Ah não, ele arrependido pede um beijo "daqueles deles", mas ela nem para aí estava voltada. Pois, dona, ela já dera outras voltas após ele tê-las dado também. Não havia esperança, confessou-me ela numa conversa que tivemos sentados no muro da fábrica de marisco, aquele donde ainda se vê o mar. Chorou, dona, chorou pra valer. Mas para avançar só lhe digo que ele se pendurou no ferro dos cortinados e saltou da janela panorâmica depois de dar ...

O Crime

Já não sabia mais como dizer-lhe se para ir embora da sua casa. Esperou meses, que se acumularam em anos. Pensou nas possibilidades. Pegar no extenso guarda roupa dele e outros pertences e pôr tudo na garagem. Ele podia fazer um escândalo tocando à porta. Teria de chamar a polícia. Poderia gritar e ficar a desenvolver assunto com a vizinhança e mesmo que não dissesse nada, a quantidade de objetos e roupas daria nas vistas na garagem, que era partilhada, e ele poderia dizer que lhe tinham roubado algo, acusá-la. Não se sentia capaz! Podia pedir ajuda às irmãs, mas tinha vergonha de assumir outro fracasso na sua vida de sentimental. Sentia-se esgotada. Talvez estivesse deprimida. Trabalhava demais para pagar sozinha a casa. Chegava ao fim da tarde sem réstia de energia e ele a implicar com os gastos do supermercado, apesar das contas transparentes - tinha discalculia e paranóia, sempre desconfiado. De resto era a sua agitação, a sua hiperatividade, sempre a falar, mesmo quando ela lhe pe...

A Caliça.

Hoje estava tão feliz com o mundo ao contrário a partir da minha cama de relva fresca, à sombra dos aciprestes de um certo convento, que comecei a ver com olhos de criança curiosa e sem seleção as coisas à minha volta. Uma delas trouxe um baque de saudade. Foi a caliça da parede.  Antigamente era muito comum a tinta das paredes desfazer-se assim, em retalhos como os países no mapa. As composições eram tão sugestivas como as nuvens! Faziam uma decoração de bonecos ou outras fantasias - num conjunto tão projetivo como nas manchas de Rorschach -, os desejos, as preocupações, as necessidades... E reverberava em nós. Eram desenhos cúmplices e íntimos. A caliça! Que saudades dos mundos imperfeitos. Que vontade de descobrir os que sobraram! 

Amizades Espontâneas.

Duas garotas à beira da lagoa de Óbidos. Ela, que talvez se chamasse Maria da Vitória, estava alojada com a família no INATEL e eu domingava com a minha. Encantámo-nos de tal maneira com a conversa e a brincadeira que trocámos promessas de um reencontro, que não aconteceu, porque não tínhamos autonomia. Não dúvido que poderia ser uma enorme amizade! Lembro-me do sentimento daquela tarde, dos momentos que se eternizaram em mim, até que perca o tino ou o sopro da vida; nela, não sei! Como é possível esta marca tão funda, tão bela?! Muitos anos mais tarde, já adulta e formada, fui a um encontro profissional. Fiz um contacto com uma colega, tão entusiástico, que fomos para o café fazer conversa boa e depois ainda repetimos noutro dia e partilhámos materiais. Naturalmente, perdemos o contacto, mas é com encanto que me lembro do sucedido. E assim aconteceu mais algumas vezes na vida, diálogos encantatórios, recíprocos, que ficaram na memória em engramas de prazer e fé na humanidade. O último...