Mensagens

Uma ligação estranha a um lugar

É um local muito apreciado! Os turistas costumam querer fazer-se fotografar ali, com o canal por cenário e os coloridos barcos de matriz fenícia. Também ela já tivera que posar algures por lá, sempre constrangida, por um não-sabe-porquê e pelo contraste com a satisfação dos seus companheiros, em cada viagem - umas três; por aí. E iam aos doces típicos da região cheios de gemas - que até isso ela detestava na altura, agora não tanto. Foi mudando com o tempo, mas esta repulsa pela cidade que todos adoram é visceral e mística.  Logo na primeira vez, num grupo de família alargada do marido - hoje e desde há muito, ex-marido -, passeavam num qualquer jardim, mas a ela só lhe dava vontade de fugir:" vamos embora, vá lá, não gosto disto!" Nem se lembra se o chegou a dizer, talvez sim, pois nessa altura era muito de boca no coração, e então julga lembrar-se do comentário e do olhar esbugalhado: "como é possível não gostares disto?!" E lá aguentou, contariada, e nunca mais s...

Deixem -me

Nem que eu crie um deus menor  para poder dizer deus me livre  de ser um projeto  de ter um projeto  de criar um  de participar nele  deus me proteja  dessa gente  dos projetos! dos colaboradores  dos inovadores  da inclusão  dos amigues...  Deusinho  estou fora  das promissoras ideologias  do início do século passado promíscuas com as novas tecnologias  e a globalização deixem-me em paz! deixem-me pensar! deixem-me ser, sendo, como sou de qualquer jeito incalculado onde paire a pele da dúvida e haja um local amplo  como despensa  para surpresas e defeitos  encantos e sombras  deixem-me estar  vendam-se para aí construam torres de Babel  prefiro a honra do cigano! a borda de fora!  ser observador sobrevivente  e escolher  não estar. 

Coisas da Vida

Esta mulher acha que sabe da minha vida! Escreve sobre mim: passei de mentor a musa! Acerta pontualmente - como no pontilhismo Seurat consegue mostrar a paisagem com falhas aqui e acolá. Hoje, por exemplo, depois das compras de última hora para a noite de Natal, telefonemas e combinações, estamos no final do almoço, com as garotas dela em algazarra a falarem por telefone com metade do mundo dos dois hemisférios e dos vários pontos cardeais. Ela passa por mim e acerta-me com um beijinho casto quando voa de sala em sala, de quarto em quarto, em particular frequência para a cozinha. Percebo a ideia, também conto ajudar, mas por agora estou a passear pelas redes sociais e a ver as mensagens natalícias dos amigos e, apercebo-me que a Maria me está a provocar - não se limita a imaginar a minha vida, como se põe a remexer no meu passado e faz questão de mostrá-lo, assumindo que eu vejo a sua página. Bem, é Natal, não vou implicar, até porque o faria apenas comigo mesmo. A minha atual é ciumen...

Desejos de Lagosta

O meu velho ouvia falar de lagosta como de um manjar mítico - eu era de caviar. Para ele, óculos de sol e música clássica faziam parte do mesmo exibicionismo de classe e ele lembrava dia de cães a perseguir os colegas grevistas afoitos, e eu e ele lembrávamos do Marcelo Caetano a falar de certos pescadores de águas turvas e de uns senhores encasacados que diziam muito bem e batiam palmas na televisão, em sincronia, presumo que em tempos fixos. E havia a Lagosta que era tão mítica que o meu velho, que se recusou sempre a ouvir música clássica e a usar óculos de sol e também não teve cão, guardou-se o desejo de Lagosta como último reduto do palácio dos desejos. Andou de avião, fez as viagens  que desejou ou lhe impingiram e gostou de todas. Comprou o forninho saloio de pão, plantou as árvores para a industria alimentar, e as exóticas, dobrou-as ao clima e, às vezes, venceu. Pôs os filhos na universidade, antes podia dizer que eram bons alunos! Enfim, realizou-se dentro do possível, m...

Inutilidade

Penso que sou preguiçosa na escrita. Revejo pouco. Quase nada corto. Quando vejo o que outros escrevem... Bem!, fico perplexa se hei de melhorar ou desistir. Mas tem um lado que posso chamar de existir, ficar mais rica, uma esperança de ser lida, que me mantém a dedilhar como uma tola! Não vale a pena, claro, como tudo o que fiz na vida, foi apenas um processo de oxidação, uma energia transformada segundo a lei de Lavoisier, um pontinho visível num caos desnecessário. Tanto fazia ter existido ou não. Nada, absolutamente nada nem ninguém ficou tocado com esta existência: inútil! Mas difícil de gerir, para mim! Uma ovelha. Mansa. Encurralada. Às vezes a tentar outro caminho, mas logo revirando para não ser esmagada. Como será o fim que se avizinha?! Torturante?! Mais do que a minha própria vida?! Palavrinhas boas - ouvi-as, mentirosas! Nos momentos-chave, só os meus ecos! Apenas um gato! Um gato, me amou! E vá lá, um gato, amou-me maravilhosamente. Tive sorte com o meu gato! Tenho dentes...

As tuas escolhas

Os dias sabem-se a si mesmos. Há quem os conte. Eu deixo o calendário e o folclore das datas especiais fazerem isso. Sei que me arrasto contra um muro que avança em meu sentido. Sei que a minha vista alcança outros seres que verei embater antes de mim. Ainda mais, isso! Sei todos os dias que perdi a minha caixa de ressonância, mesmo que só a tivesse tido por uns breves meses. Estava talhado assim e eu reconheci-lhe o valor, e também o vi partir - foi o muro da indiferença que o consumiu e agora preciso folhear as páginas gravadas das nossas conversas porque a memória, claro, mente! Mas basta-me correr os olhos nas linhas que escreveu, três ou quatro, para logo me achar faminta: será que já está pronto o livro para ser possuído?! Eu, humilde, possuir a tua escrita clara e escorreita. Culta. Mata-fome para mim. Porque será que não escreves? Nem um artigo? É um desperdício gastares o teu latim por aí. Só faz-de-contice. As tuas escolhas! 

No Clube Náutico

Tenho por paisagem o interior do restaurante do Clube Náutico, a vista do teu meio-corpo à minha frente na mesa; do lado esquerdo a vidraça continua, atravessada por veleiros lentos e faíscas que o sol empresta às ondinhas de grão fino. Pausei o olhar nesta azáfama de ruído branco visual e tu questionaste: estás triste? Eu estava desconfortável, mas talvez não soubesse fazer conversa sobre uma provável intuição de tristeza. Não tivera tempo de compreender. Mas hoje, passados dois anos, consigo ir a esse momento e responder com a pergunta: o que queres de mim? Como és capaz de ser amoral e tolo - que vergonha sinto, por não ter sabido que eras banal - enganado por uma que ama tudo, em particular a tua conta bancária! A comida, a espetada de lulas com gambas, era só sofrível, o teu ânimo era insuficiente; do vinho nem me lembro! Nos olhos só queimavam os flashes de luz das ondas, as velas às curvas por ali, negras algumas, a estrada pouco cuidada lá em baixo, o empregado com simpatia de ...

Lavagem da cabeça

Sento-me na cadeira reclinada  indicada pela cabeleireira para lavar a cabeça. Cumprimentos, escolhas do menu dos champôs, complementos e promoções. E depois das banalidades ela começa a sessão de massagens no crânio. Ainda me atenho a inquirir onde terá ela aprendido, se é reflexologia, mas logo os botões começam a desligar um por um até ficar a ouvir a música das pontas dos dedos em arcos perfeitos de pressão, o cansaço e a má disposição a escorrerem para o cano da água, o peito em expansão respirando sem bloqueios e solto uns mudos: "isso", "aí mesmo", "pode repetir"? E sem ouvir um único som do que nem disse, a cabeleireira massaja a meu pedido telepático e até para além dele, fazendo esquecer que o tempo tem partes que nos subjugam através dos relógios. Acordo depois, meia dormente, para a música do salão, sabendo que se quiser amolecer ainda mais, é só fazer a máscara a quente e ficar por ali a hibernar mais cinco minutos! Muito obrigada, ensaio dize...

Primeiras reflexões sobre a minha biblioteca

Um dos melhores presentes da idade é poder escolher recordar um estado mental associado a cada fase da vida. A biblioteca pessoal tem um papel de destaque nessa função autobiográfica. A minha não emagreceu com transplantes, destralhe, divisão por separação ou divórcio: mantém-se intacta. Por isso, nela há uma arqueologia de tempos, modas e maneiras de ver. Enchi-a descontraidamente, sem impulsos de obsessão colecionista: um riacho calmo de correntes de doce curso ao acaso da passagem por pequenas livrarias, da feira do livro ou de alfarrabistas, cortado pontualmente por vagas tendências associadas à profissão, ou a curiosidades do momento. Tem também deliciosas revistas que guardam as viagens de sonho que não fiz, e os manuais das que realizei também constam, e até coisas soltas e dissonantes, mas que me importava ler. Uma tímida penetração newage, só para saber o que era, uma pitada de orientalices. Mas houve expulsões: umas tantas ofertas que remeti para bibliotecas externas. Na minh...

Jantar a quatro

Disponho as vasilhas de gupza de gengibre, óleo de colza, e wasabi, na mesinha de apoio - aprecio o aroma delicado e exigente! Distribuo os quatro pratos kavakza pela mesa do jantar. Coloco a jarra restaurada, como agora é um must e nela um arranjo frugal e elegante com as linhas da vida e as outras. Na verdade, mandei trazer tudo pronto! Ainda me seguem?!  Marco a temperatura do forno. Olho as mensagens e digo, displicente, ao casado, que o amo. Desligo de seguida o telemóvel para me concentrar no modo eco-inside. Avanço no corredor, passo a porta, ligo o jacuzzi, pequeno luxo que me ofereci no ano passado. Esperem. Ponho uns aromas a queimar. Se querem saber, gosto de jasmim e ylang e ylang. Acrescento algo mais, é segredo, e um óleo veicular de amêndoas doces. Essencialmente gosto de sentir que faço coisas antigas e uso óleos com uma certa ascese e rótulos de pureza - essências de extração natural por doutos como o Dr. Fherrenci, da Alemanha -, dão-me o ambiente autêntico e crep...

Sobre o Livro "A Ordem"

Na futura saga, de que "A Ordem" é o primeiro volume, três personalidades dão rosto à sociedade global da Terra. Luísa Bósforo, rente à pandemia, conhece Mário Aesth, que por sua vez tinha tido uma relação com Susana Nuvem. Luísa é introduzida numa elite técnica, científica e económica, que cria a disrupção fatal, a singularidade, e convida Mário para participar num conjunto de experiências de instanciação, em que os seus conhecimentos literários são relevantes. Luísa traz para a elite a ex-namorada de Mário, por quem desenvolve admiração e deixa para trás a atual companheira do amigo, Gorgi Lotte, por falta de talento, para a Nova Ordem. Na verdade, ela como o resto da população não escolhida, perecem naturalmente, por morte comum, embora acelerada por doenças virais e guerras. É criada uma nova organização que vai evoluindo. Mas o Centrório aparece como o decisor político centralizado, logo na origem, usando o máximo de tecnologia possível, em detrimento da decisão humana. ...

Bom Dia Mário

A vida revolveu-se desde aquela época em que nos vimos pela primeira e depois pela última vez. A quarentena. Os telefonemas ambíguos.   No dia 29 de março, creio, um longo discurso sobre os Whigs e o século XIX em Inglaterra adiaram da língua o sabor a veneno. Era o quê, que me dizias?! Era sim, não, à vez, talvez? Que confusão! Aflita, vogava em tempos possíveis e intermitentes na tua estória dos Whigs. Nos intervalos, distraia-me com o aperto no peito e as linhas de pensamento que faziam perguntas e saltavam a resposta, e depois retomava a tua estória mais à frente, da qual só memorizei: os Whigs e a profusão de sentidos do liberalismo. Naquele momento, uma pedra tumular grave e anónima levitou sobre mim e levou dois anos a cair até esmagar por inteiro memórias doces ou expetativas de amor fraterno (ou eterno?!). Qualquer coisa se esvaiu da mente e ma deixou menos capaz, porque o que nos completa, nos faz ser, e o que nos roubam de dentro, nos desfaz. Foi no dia 29, se a memória ...

No Special Feeling

Consultei as minhas entranhas e não estremeci! Eu sei que falámos noite e dia, tivemos encontros de dezenas de horas entre jardins e restaurantes, demos abraços fraternos, ternos e enamorados. Sei que gostaste do meu toque e dos beijos caprichados: sei que sim! Desculpa, então, mas hoje consultei-me e não estava envolto em magia, nem o futuro se tingia de ti. Não entranhei as imagens que guardava de nós nos enleios melífluos do amor. E mais, não me fazia impressão especial imaginar-me a escrever-te umas linhas de adeus; não sentia saudades antecipadas; não me escorriam desejos pelas mãos ao sabor das tuas curvas; nada me fazia pular o órgão das chacras, sentir bêbado do teu néctar, aflorar aos lábios as pétalas dos teus ou sentir pelo avesso o abraço a mim próprio. Nada.    [Nenhum sentimento especial contrabalançava a excitação de ser visitado pela sua concorrente, que está aí a chegar para a próxima semana - vem a uma exibição musical e, depois, vamos finalmente conhecermo-n...

Vicky Martens

Vicky, bela e esguia, é escorregadia do cabelo às pontas de bailarina, a dançar plim-plim na caixinha de música; o tutu a fazer círculos titubeantes e ela de sorriso doce e terno para mim. Eu de cinco anos, em bicos de pés, a espreitá-la à altura da cómoda e a rir baixinho porque o coelho branco, embevecido com a Vicky, se assustou com a sua própria imagem no espelho, saltou e partiu a jarra da madrinha, que eu detestava. Entretanto, a Vicky acaba a corda e fica elegante e calma à espera que eu coma a sopa e cresça: ela talvez aos tombos no sótão e eu na vida. Mas juro que te resgatarei para a minha coleção de bonecos de sandplay, quando for grande e terapeuta, Vicky Martens. E quando eu for roteirista da Netflix, juro, Vicky Martens, que serás a heroína da minha novela debut, com o teu nome por título e o tema, deixa pensar: serás uma bailarina famosa, vamp, de partir os corações e não te decidirás por nenhum dos dois amantes; consequentes atribulações acontecerão na tua vida, assédio...

Avô

Ele sentava-se na arca medieval cheia de iguarias. A arca tinha patine. A fala dele também. Ele gostava da Dona Constança e da Dona Urraca. Eu, sentada de pernas cruzadas nas tábuas do chão coradas de anilina, via as rosáceas vivas das bochechas com os botões dos olhos no topo, os dentes a mastigar as palavras e a língua grossa a molhá-las, e entrava na história dele sem me preocupar com nada, porque era amor, do que ele falava, e eu também o amava. Avô!

Línguas de Fogo

O homem ateou um fogo na fazenda dele. Era a um quilómetro de distância. Uma queimada. Era outono. Subimos à placa da casa em construção para ver melhor. Fervilharam as opiniões, avisadas pela televisão: nada de fogos! Imaginei, à velocidade do eletrão, as mais escabrosas evoluções do caso - eu e os dramatizadores. Afinal não era um descaso. O homem sabia o que estava a fazer. Seguia as regras. Deu filhos e estes deram-lhe netos e aí está a evolução. As línguas de fogo e as da especulação, fizeram cinza. Sei lá quem foram. Tontos!

Necessidade

Gostava de falar agora com uma pessoa...que não fosse especial, nem normal. De preferência, não fosse muito especial ou muito normal, nem se sentisse desses modos. Já conheci tanta gente tão especial ou normal e fiquei tão plena, que agora tal não me faz mais falta; aliás, não tenho espaço na cabeça, no coração, ou na alma - não sei bem como dizer; sobra um pequeno vão, debaixo de uma escada, para me esconder a contar segredos pequenos, comer pipocas e pevides contadas também, desejando sobrar fome por saciar e um pouco de sede, e rir por reflexo dos disparates, pequenitos, sem dramas; medir a palma das mãos uma pela outra - a minha e a sua -, talvez com uma palmadita e um "ó pá!" E depois irmos embora para qualquer lado sem histórias para contar, exceto esta, parva, aqui deixada.

Gentes da Serra

A serpente da estrada da serra causa-lhe náuseas. Vai apertada entre as crianças e os adolescentes no banco de trás do automóvel, provavelmente por causa das suas dimensões: magra, baixa, tímida. A ida foi-lhe apresentada como um ritual: conhecer os futuros sogros. Ela só conhece algumas cidades e um tetra de aldeias aconchegadas umas às outras. Vai apreensiva, com o estômago a querer saltar fora. Nem tem tempo de brincar com o olhar na folhagem a recuperar o território furtado pela estrada. Chegam, o coração salta dentro de uma caixa onde é abafado, ela põe-se em piloto automático: polido, educado, civilizado, mais urbano do que era na realidade, as mãos suavam nos bolsos, o frio esfaqueava a garganta, os pés eram de pedra na forma do sapato impróprio para o clima, e tinha fome, que acabou por confessar, fragilizando a figura empalhada que estava a fazer. Rapidamente, os convivas encetaram uma conversa em rede das coisas deles - tanto por falar estando naquelas distâncias, a maior sen...

O professor de música

Ela e o amigo professor andavam a dar música um ao outro. Não era desafinada, até já se lhe sentira a harmonia, mas de baixo volume e suave impacto, e iam já numa, duas, três ou quatro vezes de encontros, ou até mais, discretamente como se fora uma amizade. Em matéria de sair à noite, ele era muito fixo no local de predileção: uma rua no Cais do Sodré, cheia de amigos das orquestras e respetivos familiares a lançar negócios de bar e restauração. E aí se acomodavam junto à vitrine da antiga loja de roupa ou de meninas, apertando os pratos em cima de um lavatório vintage convertido em mesa, no restaurante sem objetos repetidos - uma moderna reutilização preceituada -, e divertiam-se, assim modestamente, mas com muita tranquilidade. Umas noites a rua enchia até ao excesso e noutras vazava, como as marés. Ela ainda se lembrava das trupes de marinheiros que por ali vogavam, junto com os clientes das discotecas vadias, e uns grupos de curiosos, onde raras vezes ela também se inscrevia, e, cl...

Fui Levado

Fui levado à aldeia de xisto Vindo de outra, caiada Senti saudade da minha gente A solidão violou-me A música ofendeu-me Os falares eram ruído Senti falta da minha mãe e da sua tradução do mundo Eu que me julgava independente Gatinhei Tive sede como no deserto Vislumbre de ser enjeitado Podia despontar-me a morte ali A mim, desconhecido soldado.

A rua dos silêncios

A Rua Berta tem quatro casas, quatro casos. Os vizinhos da esquerda zangaram-se com os do meio e os da direita também. Os da frente são superficiais e neutros. Portanto, a rua tem silêncios em vez de bons-dias. Tem esgares e cortinas com vultos fugidios. Solidões pesadas. Esperas crepusculares pela morada dos ciprestes. Os sons de viver, que se ouvem às vezes, parecem intrusões na pele. Não são naturais. Antigamente, os antepassados daqueles viziinhos eram amigos! Amigos! Ainda me lembro dos sorrisos sinceros e das boas palavras.

Ora Essa, Hem, João Maria?!

Penso que não vou mais falar contigo João Maria. Sempre a depressão e a má disposição a alternar com a felicidade de estar com as tuas meninas; outras vezes,  afundas em silêncios que apenas querem dizer que andas a divertir-se à grande com tudo a que achas ter direito, e não é pouco! A esposa, separada de ti há décadas, deixa-te morar na vivenda, independente; tens bons espaços e até animais, um cão, dois, às vezes mais uns gatos...uma oficina para os hobbies, salas específicas e um quarto quentíssimo de histórias hardcore; o quarto de banho anexo, para as ablações consequentes, e ainda, vizinhos culturalmente interessantes. E apesar do sossego da zona estás a dois pulinhos do centro qb urbano, turístico até...e não digo mais para não te comprometer, mas só acrescentar as boas vistas para o rio e Lisboa ao longe, e as passeatas na lagoa, na cascata, na barragem e sempre as meninas como suplemento afetivo quando faltar a namorada com casa de férias, no Meco ou em Meca e uma santa, ...

Aquelas Mulheres de Portugal

Aquelas mulheres de Portugal, que eram as nossas avós nos anos sessenta e setenta e viviam na aldeia, tinham uma fibra de se lhes tirar o chapéu: tisnadas e calejadas pela vida, possuíam uma figura de que guardamos memória.  Usavam lenço na cabeça em cores sóbrias, o cabelo perfeitamente acachapado e algumas mantinham-no escuro ou madeixado, talvez porque não fossem tão idosas assim, mas chamavam-se velhas a si mesmas e eram as "Ti" qualquer coisa - nomes antigos e deliciosos como as suas comidas. Os olhinhos iam ficando pequenos e baços, com auréolas amareladas por lente e encolhiam para dentro das órbitas enrugando as pálpebras em círculos. E depois, as marcas do riso ou do espanto distribuíam-se-lhes nos pés-de-galinha dos olhos ou no til em bis da testa. Os tiles, como acentuação do longo histórico de pareceres já dados, a pedido ou espontâneos e os pés de galinha como vingança daquelas a quem dobraram o pescoço e enviaram para o lado de lá, garantindo o sustento da famíl...

Dias de Costura na Menina Antónia

Linhas em carrinhos, carretos da máquina Singer; alinhavar, chulear, cerzir, ponto atrás, remates, na fazenda, chita, jérsei, seda ou sarja, às vezes até cambraia, musseline ou organdi; as saias em godés, em plissado, com prega ou macho, travadas ou evasé. A menina Antónia fica à janela do rés-do-chão de sua casa, de onde emana as orientações - que ela assumiu a chefia da equipa -, e, na rua, rente à janela, sentadas em pequeníssimos bancos rasos e duros, assentam as mulheres as saias travadas de onde revelam as pernas torneadas que esmorecem nos chinelos com grossos dedos e unhas largas exclamando nudez vigorosa. As linhas dos alinhavos desmanchados são dependuradas no ombro; os dentes cortam os nós; a língua lambe o dedo para fazer outros, num faz e desmancha marcado pela saliva construtora e pelos caninos tesoura. A visão ótima das mulheres jovens guia a mão certeira com a ponta da linha lambida na passagem estreita do buraco da agulha. Agulhas com cus: grandes ou pequenos, e elas a...

O peixe terrestre - um sonho

O peixe vermelho e gordo dava-se fora de água, tinha-se adaptado e conseguia mesmo fazer uma correria desengonçada com a parte traseira, e saltava como um cão o faz, de alegria, até à mão do dono. Os olhos já não eram simétricos, por esforço de adaptação, ficara com um mais atrás do que o outro. Apesar de estranho, era um prodígio! O gato era meigo e cheio de feridas no dorso. Aguentava os tratamentos sem protestar. Até um ratinho feloso foi adotado, apesar do seu pêlo anunciar alguma doença, mas não conseguiu vedar-lhe a entrada, apesar do nojo de imaginá-lo escondido entre os lençóis da cama. O gato, a que se juntou uma gata velha, eram aliás grandes amigos do rato e do peixe.

Um Gato de Morna

O homem era um enfezado! Erguia o queixo e punha uma expressão séria. Se abria a boca, aparecia um dente incisivo que era metade do outro, exibindo-se um escuro retângulo no desnível, negro e decerto húmido, mas logo os lábios carnudos (sim senhor!), cobriam tudo e os olhos redondos com pestanas radiais como a Maggie Simpson olhavam para nós, impassíveis. Conforme os dias, a carantonha do homem mudava cento e oitenta graus. A Mulher, calhou a vê-lo em dias maus, mas noutros, as fotos, mostravam menos fealdade, diria mesmo que, por vezes, parecia bonito! Acomoda-se este ser na sua miúda, Morna, que se finge quente e muito moldável e geme e brada e declama mentirosa que ele lhe é fatal e a melhor escolha! E o tonto acredita, e enche o ego até lhe saltarem os bolsos para fora com o recheio de dinheiro que Morna lambe! Ah que casal tão complementar! Ela recebe os juros da vaidade que lhe insufla no ego inchado - quero vê-lo rebentar! - talvez estoure o outro dentinho e vá embater na garraf...

O 31

Era meloso e entrava de finhinho a meter conversa: que bom, que lindo, olhe sou bom rapaz, e tenha cuidado com, e gosto - repetia-se - e sabia bem porque sabe bem ser apreciado, só porque sim. Ele era daquelas pessoas que, pegando confiança, lá estaria a mandar-nos aos ares e pegar-nos na queda, o que faz rir a bandeiras despregadas qualquer bebé e os eternos bebés que guardamos dentro de nós, sem ser por querer, mas porque é assim, pronto! E ele insinuava-se e ela admirava a renda que fazia com as palavras, a renda e o algodão doce, as pipocas, as fábulas, os contares infantis e mimados da província, do campo, da praia, das heranças culturais de uma geração e porque sim, apreciava o senhor. Mas  o senhor das palavras encantadas era desdobrável em mil caricaturas - foi o que ela descobriu assim que ele se apresentou em pop-up, muito saliente e evidentemente seguro de si, a pender para o campo vital dela e ai Jesus!, ela escondeu-se por trás do silêncio, fez uma cara carrancuda para...

As múltiplas sombras de Otávio

Ah o Otávio, o Otávio; o Távi, o Távinho! Lembro-me dele, impávido ao tempo, sempre o sorriso comedido, a significar coisas diferentes dos sorrisos nas outras pessoas, muito firme nas suas extravagâncias - devemos classificá-las de extravagância ou de misoginia?! - o Távi muito certo das suas certezas, funcionário público, daqueles casos tão caricatos da norma, que poucos são tanto assim! Ele era esse tanto, essa exceção de tanta normalidade. Perdoem a contradição, mas penso que sabem do que falo. Olha eu conheci o Távi quando ele era diferente, deixava-nos a trabalhar no grupo e com toda a lata ia ler o jornal para o café,  sistematicamente! Quem diria, depois tão rigoroso com os outros, desde que se tornou meio-chefe. Meio-chefe é chefe intermédio, daqueles que sobrevivem a mandatos e mandatos dos líderes principais que fluem entre os vários ministérios ou mesmo vão a outras vidas, e eles sempre lá - muito típico, aliás! Eu conheci um Otávio inovador: imaginava maneiras de fazer ...

Um Jogo Real

Um Jogo Real novembro 01, 2021 Os jogos reais (Real Games) servem para ensaiar competências e foram iniciados nos Estados Unidos da América no treino para a guerra. Porém, o seu potencial é enorme, e a gamificação alastra pelas atividades humanas, usando e abusando dos mais básicos mecanismos de sobrevivência humanos e da tradicional ignorância que deles temos. Não se trata de verdadeira ignorância, mas da necessidade da sua ocultação na sombra do pensamento e da autoconsciência, porque nega muito do que aprendemos e do que fomos educados para acreditar.   Mas este é um parco enquadramento, não é um ensaio sobre o comportamento humano: uma pequena estória apenas, vivida algures, ontem, hoje e amanhã, por aí, pelo mundo. Procurai nas salas de espera dos aeroportos e nas selfies das redes sociais! Heminssen era um homem extrovertido, o seu trabalho permitia-lhe e exigia-lhe muitas viagens dentro do país. No entanto, a Noruega é difícil para os humanos naquela fase sem luz, e quanto m...

O Desenvolvimento de Porto Mastim

Um enclave nas falésias, bem apertado, estreita três ruas perpendiculares à margem do rio e afaga entre cada fileira de casas e a rocha, uma espécie de pombais humanos, feitos de contraplacado, lata, ferro e esferovite, a que o tempo acrescentou algumas paredes de tijolo e persianas nas janelas. As casas de baixo misturam gerações e níveis de vida. Umas repetem a traça, são pequeninas, de primeiro andar, outras de rés-do-chão e quintal, às vezes com cobertura de onde oscila, ao ritmo do vento, a quinquilharia comprada na feira; noutros logradouros, o higiénico cimento dá o mote da desolação a tanques de lavar roupa ancestrais de utilização duvidosa, ou, pelo contrário, exibe-se um investimento no grelhador e nas cadeiras à espera do sol ou da refeição, congeminadas com a mesa e a toalha de plástico. Ocasionalmente, por algumas frestas das janelas, a música popular espreita descarada e estridente, mas o povo é, habitualmente, recatado. Uma ou outra casa mais alta, com especificidade art...

Bruxas e feiticeiras andam por aí entre homens e mulheres

Tu podes, meu amor, ter a pálpebra descaída. Podes ser só inteligente e agradável que já és o máximo, mas eu, meu amor, desgasto-me com todos os ângulos para que sejam prefeitos, ou quase, às vezes um doloroso quase, afastado, e sofro, e tu achas justo que eu sofra e pensa-lo a olhar entre mim e o vazio no centro da minha testa, com uma das pálpebras dos teus olhos a descair. E se viras a cara para o mar, ou porque passam umas pernas giras, vejo o perfil da tua cabeça descontínuo, da calva ao cabelo sobrevivente a criar uma bola de massa abolachada para trás e eu devo olhar para outro lado ou apreciar-te colado com o olho vesgo às pernas da jovem. E tens um rebordo curvo na barriga que te enche de alegria - até parece! Perdoas-te enquanto te faltar a vontade da dieta e do ginásio; já eu, serei olhada com desdém se me apresentar nesses propósitos. E eu sou a bruxa má se me queixar, a vitimizada, até as tuas amigas, a tua mãe, as mulheres da tua referência vão concordar, porque elas são ...

A Desconfiança

Ele chegava aliviado do trabalho, já a respirar fundo, após ouvir o chilrear dos passarinhos e ver as abelhas a laborar entretidas nos canteiros, parou junto à árvore da janela, inspirou fundo, pensou "hoje a empregada não veio?", porque a janela do seu quarto estava fechada, fez uma festa à gata da rua que por ali poisa, meteu a chave à porta do prédio, depois à da caixa do correio, tirou um envelope volumoso e umas cartas com faturas, pô-las debaixo do braço e abriu a porta de casa lançando-se quarto adentro e espojou-se na cama violentamente, sorrindo aliviado. As cartas espalharam-se por ali. Ficou a olhar para o candeeiro e a respirar fundo e depois reparou melhor no envelope maior e rasgou-o: apareceram fotografias da namorada em esplanadas, à porta de prédios, à entrada de carros, numa praia, e aos beijos... Deu-lhe um baque no coração e temeu pela sua saúde coronária frágil. Depois retomou o desfiar de fotos! Parecia de um filme de detetives privados! Não era verdade....

A Esperta Expert

Ela era jovial, brasileira, longos cabelos negros com extensões, olhos mel, formato indígena de face e corpo normal, um pouco baixa, mas grácil. Tinha agenda! Ele era um pouco mais velho que ela, uns sete anos, casado, criador de uma empresa que ia de vento em poupa, internacionalizando-se. Ela engravidou. Ele não queria que vingasse, mas ela fez um plano. Ele era muito jovem, uns vinte e poucos anos, e foi fácil de seduzir. Um mês depois ela informou-o de que engravidara. Mostrou a maior vontade de constituir família com ele e envolveu-o num projeto de vida em comum. Tinha uma filha já de 8 anos!, disse-lhe.  Prepararam a apresentação aos pais, até porque o rapaz vivia com eles e era nessa grande casa que se iriam ajeitar: bem localizada, uma grande vivenda com mata e piscina; tinha-se iniciado na empresa do pai, após o curso de gestão. Estava combinado! A mulher marcou encontro com o homem mais velho e pôs as suas condições. Após protestos e negociações, estabeleceram um acordo! ...

Os Novos Enamoramentos

Incapazes de ser humildes, homens e mulheres não se amam mais, o mais das vezes. Podem colaborar e partilhar economias e logística, mas cada um tem a sua coqueluche animal para afetos profundos - ou partilham a mesma.  Os animais oferecem a sua boa disposição, aceitação incondicional, obediência - vá lá um capricho ou outro -, tocam a nossa pele sem pudor, e deixam-se acariciar, não têm problemas para pensar, ou resolver, não sofrem de dores de cabeça, não amuam.... Mostram amor em cem por cento do tempo. E não cobram. Se se fizesse o mesmo a um humano, ele ficaria com ideias de extensão das responsabilidades, a tentar mudar alguma coisa no outro, a pretender controlar o seu comportamento. Com o animal, não é só uma relação assimétrica favorável ao humano! Na verdade, é a relação ideal para um humano: assim ele domina, controla, e o afeto é puro, só ele mesmo, sem agenda. Há quem prefira formas humanas, talvez uma boneca japonesa em tamanho real, mas falta-lhe tudo o que é pele e e...

Um Conto Misterioso

O marido prometeu-lhe uma viagem surpresa. Enquanto se dirigia para casa, sorria por todas as frestas do corpo e a mente começou a fazer prólogos preparativos e a criar cenários em horizontes românticos. A mulher expandia a sua satisfação através da pele que esticava e melhorava a cor com um carmim de saúde, os olhos brilhavam à vez na sombra das pestanas alongadas, o cabelo adquiria um viço de juventude e os aromas de terra e citrinos surgiam em sequência pelo caminho, onde viu canteiros de flores que nunca tinha observado antes - no percurso habitual para casa. Uma canção compunha-se-lhe no ouvido, e flashes do casamento, do nascimento dos filhos, desfolhavam-se à sua frente. (...) Não se lembrava bem! Como dizer? Queria...como ... - Dulce! Dulce! Querida, estás a ouvir? - Eu...estou confusa! Conheço-te? Quem és? Ele chorou e logo virou o rosto. Mas não foi a tempo, ela vira e chorou também, uma lágrima soltou-se, uma ligeira aflição, e de novo só o presente, as palavras soltas, tudo...