Mensagens

O Rio

 Ao fundo, o rio parece uma serpente de prata a esgueirar-se na paisagem. A mulher está debruçada na margem da piscina de borda infinita a olhar o rio que se afasta devagar, cone após cone de montanha riscado por pés de videira escorreitos, sem míldio ou ferrugem, enfileirados e orgulhosos da sua casta. Ah! Quem vir o rio escorrer assim, inocente, não imagina o molde frio que envolve o homem que nele mergulha, que inesperadamente se sente só e descobre o cheiro a verde-podre e o lodaçal que chega a puxar-lhe os pés com avidez; as ervas a prender-lhe os cabelos; laços e enredos junto aos tornozelos e às mãos que os desemaranham, enquanto os peixes curiosos e indiferentes debicam a pele num toca e foge... mas o homem desimpede todas as ramificações do próprio corpo e forma depois um conjunto harmonioso com a superfície do rio deslizando nela; a barriga bronzeada virada para cima, agora que já se sente seguro, descansa, respira fundo. A mulher não o vê nem ele a vê a ela, tão longe qu...

Lembrança Solta

Por todo o lado a caliça era muito criativa ao cair deixava figuras de desenho animado ou de terror a gosto particularmente no inverno era rainha da atenção meditativa. No verão as espigas eram bonitas loiras formosas emanavam um bafo quente e dançavam rock ao vento.  Da pedreira sacava pequenas rochas que granulavam pedindo formas a esculpir de brincadeira. As rosas espinhosas e de pequena corola ficavam dependuradas na argola da santa da estrada num nicho onde parávamos para descansar da subida e reforçar os ramos compor-lhes a inclinação e espreitar de soslaio o olhar de Maria e o manto azul as contas penduradas das mãos magras e compridas. Nem sempre as bermas da estrada nacional eram banais havia uma que parecia cortada à faca e era senhora da enormidade e dos mesmos mistérios estéreis das minas cavadas rasas de água que brota por todo o lado até na primavera fica inerte a pedra ferrosa de ambas. Já em casa cheira a azeite coagulado na garrafa sacado com impulso vem benzer as ...

O Belo

Eu ainda não conhecia o belo mas o Belo conhecia-me não propriamente a mim mas algumas de tantas cópias as cópias com pequeno defeito aqui e ali com que sonhamos ser alguém. Ele já reverbarava em mim antes de não na minha mãe não no meu pai talvez em alguém que ainda esteja a brotar pois estes tempos miúdos das gerações são tão pouco importantes para o Belo Agora que provei o seu liame é como se fosse eu antes de mim ou depois ligada ao umbigo da eternidade não que ela seja a minha mãe, mas é nossa parente. O que vale agora é a semente  do Belo ser um gerador e por sê-lo me lembro que não gerei o que devia devia talvez não seja a palavra eu estava distraída  enquanto o Belo era gerador de cópias e agora eu vejo mais belo o meu defeito e dou mais valor à contrafação do meu ser a jeito de quem sabe  dele tão belo como o nome  céus quem tem esse nome em sina e eu cópia defeituosa só sinto dentro um gerador não sei se por ter agora lido ou por não ter antes lido, Belo.

Fragmentos

A aluna ficava frequentemente internada. Tinha hemofília - informava. Às vezes faltava por outro motivo: ia à baixa de Lisboa. Ficava a olhar para a janela do apartamento onde vivera com a mãe, que falecera com cancro. Sentava-se onde calhasse, do outro lado da rua, e ficava concentrada no passado, a matar e a recriar - saudades. Muitas saudades. Um casal espanhol oferecera-se para a adotar, mas a mulher também tinha cancro. Beatriz não sentiu forças para perder uma segunda mãe. Não quis!  Bea vivia com a avó, um tio, um primo. O tio tinha-lhe batido com um fio elétrico. Podia mostrar. Aqui. (Silêncio). Como seria uma nódoa negra numa pele africana? - alguém desejou enfiar-se num buraco - que vergonha!   A avó tinha falecido. O tio já emigrara. Sim Bea tinha muita família espalhada pelo mundo. Gente importante. Endinheirada. Mas não! Queria manter a casa. Ela e o primo seriam a família que sobrava. Não queriam incomodar ninguém. Não era hemofilia. A mãe não morrera de can...

Uma História com um Zé

Rosemere ouvia os seus passos e media a sombra na calçada, que àquela hora era curta, enquanto arfava com o calor. - Boa tarde, Dona Cláudia; - Boa tarde, senhor Aniceto - dava e recebia cumprimentos breves e continuava desarvorada estrada afora. Era indiferente ao que dizia, ao que lhe respondiam, preocupada que estava com o chegar. Engolia a calçada em grandes passadas, movia-se como uma máquina de produção, a rotina de andar, andar para chegar depressa. Nem a poeira da brisa rasteira a anunciar mudança de tempo lhe desviava a atenção. Ela era poeira também, a levantar voo, desarranjada, incomodativa, de partida para nenhures -, que não voltaria a pousar por ali!  Ao chegar ao quintalinho da sua casa, empurrou a portinhola que pintara há uns dias, agradecendo por na altura não se ter levantado aquele pó que lhe estragaria o trabalho e perturbaria a higiene da casa. Nesse dia, teria odiado a poeira e praguejado, mas hoje, com a terra solta grudada nas pernas a suar, só lhe ocorre ...

Histórias em Sanabria

História um  "Acelera, ACELERA", grita Rui Salsedas. "Não grites!", pede Mónica a gritar com ele. Treme. O coração dispara. Teme o derrapar dos pneus. Não sabe se deve travar, o que pode acontecer; vislumbra os camiões a avançarem para cima do carro que conduz. Encontra-se num estado deplorável. Procura uma réstia de paz, de lucidez, para manter uma condução segura e ele prossegue gritando, enervado com a condução da mulher.  Quando puderam parar e trocar de condutor, a mulher estava lívida, o suor entrava-lhe para os olhos, engordurava as lentes; sentia-se miserável, entre vítima e culpada da sua fobia, que irrompera ali, subitamente, ao ver a estrada com um desnível abrupto, o corredor do meio para sentido alternativo, e a lembrança: IP 4 , a estrada da morte! A morte temida! Matar! Morrer! Com que espírito iniciava as férias em Sanabria, o seu destino. Ficaram numa pensão. Desajeitadamente. Podiam ter escolhido melhor. Era junto ao rio Tera, mas nem se dava por i...

Alberto

Alberto Bridgetown é um homem com meio século vivido, de têmpora rija e atração magnética, em que o revés de ser tímido rendeu em introspeção e leitura compulsiva.  Na juventude, Alberto aproveitou o clima revolucionário para experimentar identidades políticas e jogos relacionais e daí veio a tendência para uma atitude de observação laboratorial escrupulosa da reação humana, em particular a feminina, às suas subtis influências. Dessa altura data ainda a personagem que representa no Mundo: um caráter nebuloso e difícil de se fazer compreendido. "Sou impossível", diz de si, desviando a semântica do termo para os domínios do capricho. Alberto Bridgetown, diferenciado, quase aristocrático, um temperamento reduzido "au" vinagre balsâmico, de fino e peculiar humor aplicado às fragilidades alheias. Subtis sugestões e ambiguidades marcam a ferros quem bem entende e reserva "para a vida" outras relações que estima. Por isso, ninguém o conhece a preceito e ele voga ...

Aldeia

 A aldeia ficava no vale. As casas, que pareciam ter sido sacudidas para o veio central, dispunham-se encavalitadas como migalhas. Os habitantes trabalhavam para os donos das grandes quintas e algum conterrâneo menos desafortunado. Com o tempo, as terras foram passando de quem as tinha para quem as trabalhava. Às vezes havia até casamento entre a aristocracia rural e os novos burgueses, se assim se lhes pode chamar. Por isso, as gentes foram-se misturando e as histórias de senhores e párias diluiram-se na memória coletiva, especialmente na dos mais novos. Tal homogeneidade, que deixava de fora apenas alguns marginais, carecia de heróis. Foi assim que a dada altura surgiram acumuladores de terras que as compravam com ganância, aproveitando a sua desvalorização e a imitação de vida urbana que muita gente fazia. Do nada surgiam artistas das mais variadas áreas. A aldeia terciarizava-se à vista de todos com a proliferação de pequenos negócios. As terras voltavam a ser reunidas em pouca...

Ghassan do mIRC

Hi. Iam Ghassan, from Lebanon. Iam a palestinian guy, living in Lahore. Criei o canal Mirna no mIRC, onde sou o administrador. Vejam: @ghassan. Mirna em homenagem à minha prometida que morreu num bombardeamento em Shatila. Agora estudo engenharia civil na universidade de Lahore. Divirto-me a conviver com os meus conterrâneos da Palestina nos canais do mIRC. A partir dele conversamos também com ocidentais, geralmente mulheres. Somos sedutores e gentis. Convidamo-los a apoiar a nossa causa, a fazer manifestações à porta das embaixadas de Israel, namoriscamos, combinamos encontros. Os meus amigos já se encontraram com alemãs, eu tenho uma canadiana; há também raparigas dos Estados Unidos e de outros locais. Alguns dos meus amigos conseguem ir em comitivas visitar países europeus. É uma honra saber que o castelo de Lisboa foi construído pelos nossos, ou ir a Alhambra e sentir-se em casa... Sou fluente em inglês e aprendo web design - dizem que é o futuro! Quando me formar vou para o Sudão ...

Regresso

Ela regressou. Voltou a si! Sabem daquele palpitar dentro?! Ela sentiu-o! Da vontade de cantarolar Dido? Foi o sinal! A sede que matou com água límpida tornou-a fresca e saborosa. Deu-lhe vontade de dançar. Adivinhou-se feliz quando o coração descompassou e o corpo falou de baixo a cima. Escutou-os. Depois devolveu ao redor um olhar casual. As trepadeiras pendulares filtravam os raios angulosos do sol e os mosquitos da tarde, azafamados, zuniam em nuvem. Viu-os. As flores dos canteiros próximos ao riacho puseram-se a fazer gracinhas sedutoras, quando ela as olhou. Púrpura, violeta, magenta salpicaram o verdão da folhagem... As cascatas pequenas desfiaram o tempo quando as olhou, até os fios de água moldarem o corpo dela e pingarem pelos cabelos, dedos e seios. Nas árvores próximas a fruta madura espera, resiste à gravidade e reserva o néctar pintado de cores namoradeiras para o seu palato. Deitada à superfície, sente as vagas que lhe embalam o corpo negligente e nu, em contorno pleno....

O Centro Comercial de Alvalade

O Centro Comercial de Alvalade nasceu em 76, lembra-me o Google; o resto vem mesmo inteirinho do rabiar da memória. O maior destaque vai para o aroma que nos recebia, quer entrássemos pela porta principal, quer pelo túnel do metro: indescritível, irrepetível! Na cafetaria, disposta ao comprido do corredor, havia babás de rum a piscar-me o olho, e eu, pois sim! Já que estava mesmo no paraíso, lambuzava-me! Depois, fazia o percurso do corredor principal vendo os retratos a carvão, uns livros expostos, marroquinaria e outras distrações visuais, puros cenários sem figuras de grande relevo; virava à esquina e metia-me no beco onde me aguardavam as águas cristalinas das Caraíbas ou da Ilha da Páscoa, ou de outros paraísos!... Pequenos e delicados tesouros brilhavam na luz dos foco de halogéneo, num fundo de escuridão da montra da joalharia. Os tetos ofereciam uma música  jazzística e, de entre todos os mergulhos disponíveis, eu apontava os olhares do coração à pedra de água-marinha, que ...

A Criança do Homem

A Criança é uma centelha, a potência do Homem Novo. Educá-la não tem importância realmente: vê-nos intervir na sociedade? Os filmes, os jogos digitais, a violência - incomoda-nos?! Espalhamos valores pelo Mundo?! Ah! Pois não! Apenas a Escola e o poder político a ela associado, nos importa! Os resultados estão praticamente garantidos. A nossa Web está bem espalhada pelos órgãos do poder! Temos influenciadores eficazes! O recrutamento de praticantes de primeira linha é feito entre os professores, os professores de professores... É por isso que não fluímos ao sabor da ciência capitalista. Não nos é superior: fazemos-lhe frente; utilizamo-la quando conveniente; deixamo-la passar por entre estudos, rankings e PISAdelas, porque realmente não nos tocam - já pensaram porque nos deixam incólumes, apesar da aparente oposição: somos autores na grande hecatombe que eles avaliam, e, no entanto?!..  Não é do nosso interesse defraudar rituais de base que ensinamos aos nossos da primeira linha, c...

Rapto

Estava a ver uma foto do Mário no passeio ribeirinho, quando senti um baque na cabeça e perdi os sentidos. Quanto tempo depois - não sei -, encontrava-me no leito do Tejo, rodeada por amuradas, Lisboa em exposição, dourada ao sol, e eu sozinha naquele iate enorme. Chegou entretanto um sujeito alto e muito moreno, diria que angolano, e sentou-se na mesa pequena e convidou-me ao mesmo. Obedeci sem dizer palavra, muda de espanto. Apresentou-se: "Senhor knock", foi o que me pareceu ouvir. Desejava-me uma boa estada, com tudo ao dispor, de alimentação, cuidados de enfermagem, piscina e ginásio, massagem e muito mais. A troco esperava que lhe desse opinião sobre uns quantos assuntos de políticas públicas. "Política", balbuciei a medo! Sim, iria ouvir uns tantos forsighters e eu seria um deles. Não ousei pedir explicações. Mergulhei o olhar na piscina central que começava a iluminar-se por dentro e estendi-o depois aos pormenores de luxo a que só agora me permitia aceder. ...

Aventura

As duas amigas gostam de acampar uma vez por ano. No grupo delas poucos se entusiasmam com isso, portanto costumam ir sozinhas.  Naquele ano tinham combinado ir dar uma volta por Sanabria, assentar em Los Robles, e fazer a viagem por etapas desde Lisboa.  Encontraram-se em Vila do Conde na casa da tia de uma delas. Era uma quinta senhorial de uma burguesia outrora poderosa, mas agora decadente. A tia era uma figura digna de um livro. Na extensa mesa retangular, a família e as atuais visitas almoçavam e faziam uma conversa, por certo, habitual. "Os caseiros eram quem agora mandava na quinta", dizia a senhora: "tinham-se apoderado" em troca de serviços e produtos agrícolas, aproveitando a falta de vontade de trabalhar generalizada; eram donos da casinha em frente e compravam cada vez mais terreno à tia, regalias e poder negocial. Ela, que podia fazer? A idade avançava, uma filha era doente, e a outra, adotiva - tomara ela ser ajudada.  O garfo de prata antigo furava o...

O Relógio de Sala

Era um senhor, o relógio de sala herdado. Posava cheio de dignidade dentro do seu nicho de madeira muito patinada! Ao abrir a portinhola: "cuidado para que não se quebre o vidro" -  parecia arrepiar-se a sua voz rangente. Mas eu só ia fazer-lhe cócegas na intimidade das rodas dentadas e procurar a chave da sua vida de corda. Havia um buraco para o tlão e outro buraco para o tempo. Ele ria-se da minha atrapalhação: confesso não saber bem o que a chave faz acionar. Assim desnudado, via-lhe a pele do mostrador de papel com ligeiras imperfeições, os dois ponteiros autoritários e a roda dos números pasmados, cansados da observação. "Agora é uma; agora são duas", ensinara-me a ver o tempo quando eu era pequena. "Tlão-tlão" disse incansável a cada hora da minha vida e de todos da família; conseguiu compensar com primor as horas em correria com as interminavelmente lentas: o balanço deu sempre certo, sem sobras ou défices. Ah e aquele enervante rigor de tic-tac, e...

Os balões

As crianças subiam, cada uma em seu balão de hidrogénio; tal como elas, eram coloridos. Umas mais alto ou depressa do que outras e ela lá no meio, plo meio. Olhou para baixo e um cabrito, mais um vitelo, uma ovelha, um gato, olhavam pedintes. Eram os animais já mortos, alguns comidos nas festas recentes; outros, pobre errantes, sem lar humano. Para eles não havia balão de sobra. Percebeu que estava mais próximo desses animais do que de muitas crianças que via subir céu afora. Mas tinha cores. Os animais eram a preto e branco e o pêlo parecia de algodão, apetecível. Lançou a mão para baixo e cambaleou um pouco no ar, os bichinhos deram saltos, mas não se chegaram a tocar. O balão subiu um pouco, depois mais; a menina viu um ponto no monte: a casa da família, o traçado das quintas e terras agrícolas e desistiu de procurar manter os amigos animais sob a vista. O ar era puro e um pouco fresco demais; os balões começaram a soprar ar quente na direção das crianças; várias passaram por ela, o...

Zimba

- Que frio, Zimba! - diz ela. - Protege-te aqui debaixo - cuida ele. Ao bafo da tarde segue-se uma surpresa gélida no ar. Chuvisca. Os dois, sob o espesso sobretudo, saem da casinha coberta com hera. Dão uma corrida. - Amanhã... - hesita ela. - Sim querida, amanhã vou-te levar a Lisboa. - Mas, não é cansativo para ti?! E além disso tens os compradores a visitar a casa. - Mudei a data. Não te preocupes. Não se preocupava! Os seios arfavam. Já dentro do carro, ela chorava em silêncio; os pingos de chuva a modelar-lhe o rosto. Ele a conduzir; o olhar focado na estrada. Ela revezava-o no regresso. Nas suas mãos, o Ford seguia a estrada ondulante como um zombie.  A comida soubera-lhe mal, um sabor a metal na língua concorrera com a caldeirada de peixe do rio. Regressados a casa, subiram para o quarto, que se mantinha sem porta ou parede, no andar de cima. A pintura amadora das paredes, feita pelo homem, era naif talvez, com espirais de desenhos populares, e a decoração incluía xailes so...

Miss Mena

A turma do décimo tinha aquela composição: grupinhos, parzinhos, uma certa competição pela nota; uns da Avenida de Roma, outros nem tanto. A Mena tinha penteado à Malvina da telenovela brasileira, embora a franja se franzisse depois de esquecer o alisador. Não tanto quanto as saias rodadas de tecidos florais, num estilo um pouco fora de moda, mas a mãe era costureira. Ninguém se importava com a roupa da Mena, que tinha uma expressão de rosto delicada assente num corpo de mulher - não dera por crescer! Debatia-se sem grande sucesso para arranjar melhores notas - ficava pelo rés-vés; tinha um namorado também alto, um pouco mais velho, que a vinha esperar ao portão, mas de quem fazia mistério.  Um dia, correu um rumor que, ainda na fase imperceptível, zuniu e varou veloz como uma rajada de vento, fustigando a turma em movimentos de seara: "qualquer coisa, vejam, que estranho" - e mais comentários que de novo se fundiam e texturizavam em zumzuns. Finalmente veio-me parar às mãos ...

Clarisse e as Formigas

Clarisse não tinha ficado estampada entre as folhas do livro da primária, a contar formigas. Saira dele pela calada, vindo apreciar o labor das abelhas e aprender sobre os movimentos precisos que lhes permitiam conversar à sua maneira. Às vezes, de papo para o ar, numa clareira, vigiava os bandos de pássaros e os de patos; imaginava outras tantas ligações a constelar na floresta, nos céus e mares, entre os animais, as gentes e suas cidades. E no futuro, quando isso se soubesse?! Clarisse sentia um impulso para a revelação, mas a ninguém conseguia contar. Às vezes tentava - o quê Clarisse?!, a mim é que...; e não voltariam ao tema. - Clarisse, não me interrompas, deixa-me acabar. Acabar por dar uma desculpa para não ouvir no tempo ditatorialmente destinado à fala de Clarisse. Não havia tempo, oportunidade, vontade de alguém enxamear com Clarisse. Logo ela que tinha umas ideias sobre isso de dançar, fazer bando, pandã, e contagiar tudo! Tingir! Texturizar! E até à distância: Wallace e Da...

Madressilva

As copas dos pinheiros mansos recortam ondas no céu pálido, ao anoitecer. Contêm, num manto espesso, todo o palrear dos últimos pássaros. Os ninhos estão prontos. A gata da rua clama por vida nova. Tudo se apronta e eu lanço o fio do olhar à madressilva. Procuro, fixando a vista, os recantos onde escondia saquinhos de dor. Em tempos, salpiquei a planta com miradas sofridas por dó de mim. Ainda não a limpei. Ainda lá poisa a memória e reencontro os alçapões. Porém, o olhar já se distende pelo ondular dos pinheiros, acompanha a imensidão da noite que se acomoda nas copas, mansas e idosas, donas da contenda do dia, plenas de presente e prenhes de primavera. Tanto! E eu deixo para outro dia o trabalho de desempacotar as dores antigas. Aspiro o aroma forte da madressilva. Suspiro. Aguardo. A noite deita-se no pinhal. Já não ouço os pássaros, nem a gata. Agora, um mocho ao longe; o repuxar do travão de mão. Deixo-me estar! Ou ir! Uma azáfama, quase imperceptível, por certo de contentamento f...

O quinto filho

Depois de quatro filhos e alguns enteados a Né vem completar o quadro com o seu quinto assumido. De ambos os lados - leia-se, dele e dela -, há uma harmonia perfeita de objetivos. Nunca escolheriam alguém fora do leque: sem estatuto ou dinheiro. Ela tinha que ser bonita e alegre, claro!; ele, sem barriga. Entretanto, o homem é picuinhas e ela é menos "bem" do que se faz parecer e mais aflita com as contas. Mas é empresária de sucesso, se não hoje, no passado. E isso chega! Né não tem demasiado tempo para dedicar a Afonso, o que é ótimo, para não dar sufoco! Os outros filhos servem de entretém e já quase não dependem dela, mas lá lhe vão ocupando o tempo! Filho é parasita, mesmo! E há a querrucha, mais tardia, mas de boa lavra, que garante vivacidade familiar e a ligação a uma importante fonte de rendimento: o seu pai!  Afonso é sério, quase sisudo, porém acha-se muito fino de humor e de outras coisas; é introvertido e amante de literatura. Escreveria bem, se escrevesse alguma...

Ai que dor! O Duarte

Podia ser o título de uma série. Um psicólogo escolar guarda memórias arrepiantes dos alunos que conheceu! Deviam ser contadas, desmontando e recombinando, ficando anónimas e perdidas no tempo... O Duarte, nome inventado agora, tinha apenas 15 anos. Ficava alterado nas aulas, em turbilhão emocional; às vezes fugia da escola, saltando a vedação e fazia longos quilómetros a caminhar. Uma vez contorcia-se de dores no peito e chorava. Muitas vezes chorava, mas daquela agarrava-se a si mesmo, na zona do coração, tremia e dava ais. Ficou na maca um tempo, em sala própria, e a psicóloga com ele, fê-lo falar e tentou o relaxamento. O rapaz contou-lhe os flashes que tinha da sua cadela a ser morta à facada pelo padrasto, que era talhante. Imaginam?! Tomava o cocktail de medicamentos psiquiátricos, tinha a CPCJ, vinha de outra escola, não aguentava estar dentro de uma sala de aula. Mal sabia ler! A mãe, mulher de aspeto muito estragado, vinha sempre que solicitada. Parecia ter debilidade intelec...

Pela Avenida das Forças Armadas

Hoje penso por aqui na Avenida das Forças Armadas. Alguma saudade, talvez do vigor de subir energicamente este local por onde tanto passei, convivi - enfim, vivi! Não tenho grande memória para detalhes, surgem-me flashes. Muitos. Desde o café A Pátria, com a sua jukebox, o restaurante chinês mais abaixo - quantas vezes o frequentei?! Por quase todas as mesas passei! - até à geladaria - onde fui poucas vezes, creio que não esteve lá muito tempo. Cá em baixo, a Feira Popular, frequentada desde a meninice e depois por várias fases na vida, incluindo o almocinho de frango, ouvir os pregões atrativos dos empregados dos restaurantes e ainda dar uma voltinha pela bruxa, o comboio-fantasma, o poço da morte, ver as rodas e jurar não as experimentar, encontrar alunos do centro de formação, lembrar a birra do irmão quando era pequenino - uma vida, ali! Cá fora, na esquina - será com a 5 de Outubro?- onde eu ia ao telefone preto, com o contador de períodos, acertar encontros, ou afinar vendas - si...

Nádia

A Nádia era um junquinho, dobrava-se facilmente à menor brisa, e, no entanto, não quebrava! As desavenças com a mãe já tinham barbas, acusavam-se mutuamente na esquadra da polícia - era um estilo de vida. Interpelada, a mãe repetia acusações ao ex-marido, que agora vivia bem: casara de novo e tivera filhos. Outros filhos. De vez em quando vinha buscar as duas que tinha com ela, que tudo fazia para lhes dificultar a ida. E, realmente, a Nádia detestava o pai, por nada mais do que por ter "deixado" a mãe. A mais nova não vestia camisolas ou tomava partido e assim lá andava feliz. Já a Nádia parecia o tal junquinho, frágil, fácil de dobrar, teimosa - vestia a pele da mãe despeitada. A mulher trajava de negro como uma viúva, sem estilo, apenas se encobria, se dissimulava a inveja, o despeito ou o desejo. Era a perfeita vítima e aí estava a prova: a filha infeliz e difícil. Para seu horror, a Nádia também a detestava a ela. Mas um dia mãe e filha fizeram as pazes. Passeavam, tinha...

O ovo de Clarisse

Voltei à Clarisse. Tinha-a deixado para trás enrolada em angústias: eu e ela. Desde que a vi num vídeo que me começou a ler os seus contos, com a voz arrastada, sopinha de massa, ar de mimo e aquele jeito de desenhar olhos, exótico, e a boca a derramar realidade, como sangue numa ferida recente. Tudo nela encanta e dói!  Então ela me tem contado os seus contos antes de eu adormecer. Hoje dei-lhe uma hora do dia. Ele já vai alto, os pássaros devem ter cantado, os ramos adormeceram ao sol, sem bulício e eu, ouvi apenas a Clarisse contar-me O Ovo e a Galinha. Por vezes, pedi em súplica: "pare aí garota, me deixe pensar" - e usava o tempo para me sentir metafísica - e eu nem sei o que isso seja -, mas era um imperativo de transcendência que me acometia. Clarisse não comentava. Retomava, tranquila, a sua leitura, ou o seu contar do ovo, quando eu me dispunha a ouvi-la! Vi Moisés, de Frida Khalo! Ouvi uma filosofia meio-espírita, que talvez conste em algum evangelho não corrompido ...

O Miguel e a Dislexia

O moço tinha um sorriso cativante, olhos como faróis azuis em moldura loira. Bonito e confiante como um vendedor de casas. Chamara-o por motivo inespecífico: "havia de ter qualquer coisa, pois não aprendia". Conversámos animadamente e pedi para ler. O Miguel tentou-o, a chorar. Foi um choque! A tia era quem o criava e contou o problema no nascimento e que uma psicóloga já dissera que tinha dislexia.  Não sei se era da linha cognitiva-comportamental prevalente, mas no meu curso desvalorizavam-se estes "diagnósticos" e acrescentava-se com ironia: "agora todos têm dislexia"! Atirei-me aos livros. Foi muito árduo explicar aos professores as necessidades do aluno; eles protestavam que aquele aluno não podia estar naquela escola. Estávamos no início dos anos noventa. Cheguei a ter comigo um membro do Conselho Executivo e lá se fizeram adaptações. Dali em diante, fiz uma jura: "iria ser expert em dislexia" e assim tentei, fazendo várias formações e apre...

O Enxoval

Quando quero referir-me a um rol de coisas, geralmente inútil, designo-o por enxoval. Quando era pequena, havia essa estranha coisa do enxoval! Via as mães pôr numa arca: naperons, lençóis, e outros panos. Ofereciam às garotas, desde pequenas, tecidos bordados, aprimorados, úteis, para um futuro em que seriam mulheres casadas. Eu quase não tinha nada. Mal me apercebi da congeminaçao para nos formatar, resmunguei e deliberei que não queria enxoval. Tomei-o por violência contra a autodeterminação do meu futuro, mas não pude impedir todas as ofertas. E assim, um paninho de tabuleiro da avó amorosa, ainda vive na minha casa - vi-a comprá-lo e não percebi ao que se referia; foi a primeira oferenda. Mais tarde, tive que perdoar a avó por não vislumbrar a minha emancipação. Às vezes, as mães abriam as suas próprias malas de enxoval, onde residiam lençóis, atoalhados e rendas inúteis, que pareciam guardar o futuro passado. Sonhos. Não os "metiam a uso", por pena, diziam, mas era mais...

Sem título - porque me esqueci!

Uns anos depois já não te vejo nos sonhos, nem viajo contigo no tempo. Lembras-te de nós em Alexandria? Em Paris? Em Lisboa, no final do século XIX, ou no Aglomerado de Núncio, na Era da Espiral?  Nem sombra já fazes; não me ocupas espaço, ouves, lês, tocas, influencias; não jogas comigo, trauteias ideias, estimulas oxitocina, nem eu a ti. Não, não sei se ainda respiras... Nem se eu estou realmente viva... Que não és um nada, também é verdade! Serás um rasto de um esquecimento em avançado estado de decomposição. Nem um bafo se sente! Nenhuma emoção! Nem a ausência é presente. Que estado fátuo te atingiu: uma não-existência; uma voz extinta, difícil de acreditar que viveu. Não tinhas perfume?! Não rias?! Ou rias?! Era quente a tua voz?! Ou fria?! Falavas ou apenas te repetias para a tua audiência interior e me deixavas assistir, bater palmas efusivas e adorar-te?! A tua história era tua, ou uma história contada para pareceres ser o que não foste, és, ou serás? Os teus amigos são-no ...

Memórias

Hoje chove a cântaros. Lembro o som da água a cantar nos gargalos, a sair ou a entrar nos cântaros de barro que guardavam água fresca no loiceiro da aldeia, abaulado para se poderem virar os pesados e bojudos recipientes, facilitando a saída da água para os copos de talha bastante formatada. A água sabia a hortelã. Talvez não a hortelã, mas a algo verde e fresco. Sabia a quê? À infância. Íamos buscá-la à fonte, a alguma distância e com esforço. A água. A infância. Combinávamos a composição do grupo e a hora. Metíamo-nos pelo atalho que passava pela bagaceira. O cheiro forte, o monte de entulho negro à porta. Quem lá estaria dentro e o que faria? Era para mim como uma central nuclear, com especialistas obscuros dentro, em equipamentos incompreensíveis, suor e labor alienados; ainda por cima, homens: estranhos seres de que conhecia poucos exemplares e mal. Mas o caminho era trilhado a bom ritmo, sem tempo para apreciação de paisagens. Apenas me refiro a elas porque se me instalaram na me...

Um sonho prévio à guerra

Só para recordar, registo o que lembro. Na primeira parte, quase nada recordo, senão estar a conduzir por estradas confusas e a negociar caminhos com alguém. O que importa é que, ao recordar, me vieram à memória pedaços de outros sonhos, em viagens e lugares pormenorizados. Adiante, o que me incomodou foi a segunda parte do sonho! Chegámos à casa da Cris, que é no Douro: uma casa grande, porém sem a glória que eu imaginava. Passei de carro por ela e fiquei nos momentos seguintes, a recordá-la, mesmo dentro do sonho. Tinha uma pintura arenosa e irregular de um amarelo pálido, um telhado de telha canudo, rósea, um logradouro, e mantinha uma janela aberta, onde por entre as cortinas a esvoaçar, se escancaravam uma dúzia de fotos do filho de Cris, com deficiência, sorrindo. A cortina estava arredada para que bem se visse o melhor da casa: o filho! Sei que a casa tem piscina, mas depois de chegarmos, acoitámo-nos no primeiro piso, amedrontados, e que não foi possível sair, pois a ação que s...

A Catequese

Ia à catequese, porque sim. Iamos todos. A Cila foi a minha primeira catequista. Era adolescente. Ensinava orações. Quando decorei o Pai Nosso, embora andasse embrulhada com o conteúdo, ganhei um santinho. Fiquei orgulhosa e o meu sentir valorizou o santinho. Comecei a ver-lhe cores bonitas. Cores que raramente via, de pintura religiosa renascentista, provavelmente. Uns castanhos avermelhados, penso recordar. Uma grande nitidez. Um homem de outros tempos, com outros trajes. O rebordo era recortado, o que também era importante. Era uma estampa retangular que mostrei em casa e perguntei o que fazer com ela. Punha no livro de missa. Deveria ter um, mas não me lembro. Já do véu, sim. Era beije, de tule bordado, com rebordos reforçados e ligeiramente curvos. Era novidade estar com a cabeça num véu. Não sabia o que sentir. Mas diziam que tinha de ser, recordando uma série de castigos e penalizações divinas, mas exercidas na terra - isso e se mastigasse a óstia. Esta, mal a provei, duas ou tr...

O Seu Lado Solar

A brisa flui, doce, pontualmente urgida por pequenas rajadas que logo esmorecem no traquitar dos ramos da vegetação farta, mas tranquila, quase de jardim, lá fora. A casa volta a ficar iluminada pela luz indireta do pequeno morro cor de terra em frente à janela e das poucas nuvens de passagem lenta, mas determinada, ...e tudo lhe reenvia a luz daquele sol nostálgico que antecipa a primavera. Os amarelos e vermelhos pálidos-aguados da luminosidade encaixam perfeitamente na memória da casa do amigo. Estava a vê-lo de nariz empinado na direção do sol, a dizer-se feliz por estar ali de nariz empinado para o sol - tão só isso! Era feliz! Ela fixava-lhe o perfil, e sem querer apreciava o seu estômago dilatado, em bola - também este lhe parecia em regozijo e empinado. Nada afetava o amigo! Endurecera na política desde a faculdade e há menos de uma dezena de anos que a abandonara, de pútrida, a definhar... "Quanto contribuira para esse mau desfecho?", era conversa que não sabia fazer...

Adeus às coisas

As coisas sobrevivem-nos. Esta é uma ideia chocante! A "minha vida" em contagem decrescente, em convívio com obsoletos objetos, móveis, lápis, a casa, a roupa - tanta coisa que teima em ficar depois de mim! De mim! Eu, que escolhi, trabalhei e adquiri cada uma delas! Eu que as desprezo e relativizo o seu valor: apenas coisas! Elas, em vez de mim, podem ficar! Sinto uma náusea. A descoberta do valor temporal das coisas e de mim, sujeito, choca-me! Não consigo inventar ou esventrar uma ficção que solucione, ou ao menos alivie, esta sensação de iminente perda total! É incrível! É inacreditável e todos os seus sinónimos. Fico perplexa com um lápis que não se gastou nas últimas décadas. Há muitos mais! Há muitas coisas que duram, perduram. Outras expulsei, doei, eliminei - até essas me visitam a memória. Como livrar-me do passado que me ultrapassa no futuro, que durará, que será menos punido pelo tempo?! Consumo muito café: acelera-me o metabolismo. Penso muito! Canso-me! Amo! Tan...

Um sonho em tempos de guerra

O homem era alto e vistoso e muito interessado em  iniciar a relação com Helena. Tinha, no entanto, que levar a família de barco, numa espécie de procissão, para fora do país, até passarem a fronteira, remando contra a maré. Aconteceu que, ao chegarem perto da fronteira, - que era uma queda de água artificial, em que a água corria ao contrário da direção lenta dos barcos -, uma barreira de fogo surgiu repentinamente ao longo da linha superior da barragem e, depois, contaminou todo o declive onde a água escorria, até ao limite inferior, junto à superfície. Voltou a subir, essa barreira de fogo, de modo maquinal até ao ponto superior da barragem. A família - mãe e pelo menos uma criança -, foi corajosa, apesar do susto; já o homem, desmaiou e, de futuro, fazia-o sempre que contava ou se falava do acontecido.  Regressou, veio ter com Helena. Enquanto o aguardava, a namorada do homem belo, pensava que não sabia o que lhe oferecer, como se fosse o aniversário dele. Estava em duas p...

Au Martinique

Porcy teve um pesadelo em que lhe roubavam o gato após o namorado insinuar a viagem à ilha francesa. A prima fora lestra a atrai-lo pelo lado hedonista. Iria pelo prazer de ir. De resto...era o resto, o que menos importava! A prima era o veículo do prazer da viagem! Porcy veria o seu gato ir, de prima! Cinquenta por cento da percepção de felicidade é genética, os outros cinquenta distribuem-se por fatores do contexto e da personalidade, alguns ligeiramente mutáveis. Então será sobre esses que ela tem de exercer o seu foco libertador. É que não merece a dor, a dor da perda do vínculo primário, a dor dos jograis e dos cátaros, a dor de corno andaluz, a dor das canções e dos poemas a sangrar, nem a dor - muito menos essa - dos obsessivos assassinos! Ah! Não! Há que treinar a dialética (de si para si) do pensamento racional, encorpar a dor em narrativas e imagéticas de expulsão, falar com cadeiras vazias  como Perls, amolecer os excessos em respirações diafragmáticas, mente plena, ment...

Palhavã

Palhavã era um nome que estava alojado na minha memória com umas pernas altas em pijama hospitalar e um rosto que pouco conhecia, mas que era dO Amigo do meu pai. Uma amizade que se estendia entre as mães de ambos e havia visitas e cartas entre elas, o que era muito estranho, conhecendo o meu lado paterno. E depois disseram-me que morrera e eu nem entendia bem a morte, muito menos a de um amigo com letra grande. E assim guardei na memória o assunto, para compreender mais tarde. Naquele dia, ela marcou encontro comigo à saída do hospital de Palhavã. Apareceu no anoraque amarelo que eu lhe dera, o cabelo também amarelado, o que me chocou, e um sorriso tímido e preocupado. Tinha um nódulo na tiróide e precisava de fazer um exame. Acompanhei-a à Avenida da República e vi como se apoderou do medo e não o contrário. Recebidos os resultados, era benigno e ficava sob vigilância. A primeira memória de Palhavã, afinal andava a fazer mossa: sempre que subia do metro na praça de Espanha, sempre qu...

Don't Don't Look Up - mas não me chamem Dibiasky

O filme Don't Look Up estabelece um fluxo reverberante com o espectador. É sobre o comportamento do próprio espectador projetado numa situação ficcional; o espectador reconhece que se vê no espelho a si mesmo!; depois volta a fazer tudo como se fosse só mais um filme; e assim se cumpre a previsão. Em Don'T Look Up, Peter Isherwell, o dono do mundo e da empresa BASH, tem dados que lhe permitem saber quase tudo de quem quer que seja, até sobre como vai morrer, e usá-los para o que desejar. No Brasil, todas as crianças e adolescentes forneceram dados sobre a sua subjectividade sócio-emocional (portanto, psicológicos), via questionários aplicados pelo sistema educativo. O PISA e seus ramos trabalham com afinco para generalizar esta avaliação (e intervenção posterior, colocada no currículo) em todo o mundo. Esses dados das crianças brasileiras, são já parte do big-data universal. Essas crianças, podem um dia ver-se confrontadas com um Peter, provavelmente em forma de crédito social ...